Notícias publicar aquela caixinha em primeira página, mesmo que discreta, pareceu-lhe perturbador. Se tudo era falso, porque difundira essa notícia? E por que razão a comissão de censura a deixara passar?
"Doutor?"
Quais as reais intenções por detrás da publicação de texto tão extraordinário? Seria uma forma encapotada de passar uma informação verdadeira? Não iria isso...
"Doutor?!"
A voz irrompeu ao retardador na mente de José Branco, dissolvendo-lhe os pensamentos.
Olhou para a porta e viy uma mulher de meia-idade a observá-lo. "Hã?"
"O senhor director está a chamá-lo", anunciou a mulher. "Faça o favor de subir."
O escritório dormitava à meia-luz no rolar morno do final da manhã, o torpor apenas perturbado pelo ranger casual de uma madeira, pelo tiquetaque hipnótico do relógio de parede e pelo ocasional farfalhar de papéis a serem remexidos. José havia cruzado a porta um minuto antes e Floriano Carvalho nem sequer levantou a cabeça. O director lia um documento, aparentemente absorvido no seu conteúdo, embora o visitante ficasse com a distinta impressão de que o superior hierárquico se fingia ocupado.
Floriano deixou prolongar o momento, indiferente ao pigarrear do convidado para assinalar a sua presença, até que acabou por juntar os papéis com algum fragor. Arrumou-os na esquina da secretária, afinou as cordas vocais e mirou por fim o subordinado.
"Doutor Branco", foram as suas primeiras palavras. "Não posso negar que me sinto decepcionado com o seu comportamento."
A declaração de abertura, sem cumprimentos nem preâmbuos, deixou o subordinado apreensivo. Floriano Carvalho, o director que tão bem o recebera três anos antes, acolhia-o agora com alguma frieza. José vacilou, sem saber se deveria dizer alguma coisa ou permanecer calado, mas como o director nada acrescentou àquelas primeiras palavras sentiu que lhe cabia algum tipo de reacção.
"Bom dia", cumprimentou, esperando que Floriano percebesse que se tratava de um remoque pela falta de cortesia do acolhimento. "Dá-me licença que me sente?"
O superior hierárquico fez um gesto imperial a indicar a cadeira que se encontrava diante da secretária.
"Faça o favor."
O médico puxou a cadeira, arrastando-a deliberada e ruidosamente pelo soalho, e acomodou-se. Cruzou a perna, de modo a ocultar a apreensão e dar até a ideia de que, apesar do formalismo polido das suas palavras, não se sentia minimamente intimidado, e encarou o superior hierárquico.
"Lamento que se sinta decepcionado", começou por dizer. "Mas na verdade nada fiz."
"Fez, e o senhor sabe muito bem que fez."
"Eu não tenho..."
"Deixe-me continuar, se faz favor", cortou Floriano num inesperado tom tenso, embora controlado. Ergueu-se da cadeira e caminhou até à janela. "Sabe, doutor, eu tenho um sonho."
Estacou, contemplando a paisagem urbana com os braços cruzados atrás das costas. "O meu sonho é a grandeza de Portugal. Se pessoas como eu e o senhor estão aqui é para desempenhar um papel, para cumprir uma missão. Uma missão civilizadora." Fez um gesto, apontando os edifícios para além da janela. "Há cem anos não havia aqui coisa nenhuma. Isto era mato e uns pântanos e umas palhotas. Mais nada. Erguemos esta cidade em pouco tempo e faremos mais e melhor se pudermos e nos deixarem." Indicou-se a si e ao seu convidado com a mão direita. "Eu e o senhor somos ambos os emissários da civilização. Compete-nos a nós reerguer o império, restaurar o orgulho da pátria, afirmar o papel de Portugal no mundo. E isso, caro doutor, faz-se trabalhando." Ergueu um dedo e voltou-se para o médico, a luz do dia a banhar-lhe metade da face. "Essa é a palavra crucial.
Trabalhando. É para isso que aqui estamos. Para trabalhar, para fazer coisas, para erguer a civilização, para alargar os horizontes, para honrar a nação." Caminhou devagar para o seu lugar.
"Enquanto estivermos ocupados com o nosso trabalho está tudo bem. Fazemos o que sabemos e damos o melhor que temos. O resto não é connosco." Sentou-se. "E por isso que estou decepcionado consigo. E que o senhor doutor fez o que sabe fazer. Mas resolveu também fazer o que não sabe, e aí borrou a pintura toda."
Floriano manteve os olhos fixos no subordinado, como um professor que chegou ao ponto crucial da lição e observa o aluno para se assegurar de que ele assimilou a matéria. José remexeu-se na cadeira, incomodado e esforçando-se por se manter contido.
"Caro senhor director", disse. "Eu faço o meu trabalho o melhor que posso e sei. Creio aliás que ninguém põe isso em dúvida. O que aqui me trouxe... ou melhor, o que o levou a chamar-me não foi a qualidade do meu trabalho, mas um problema de relacionamento pessoal. E, sobre isso, deixe-me ser muito claro: as pessoas têm de saber respeitar se quiserem ser respeitadas. O doutor Abreu não respeitou um amigo que me foi visitar ao hospital. Insultou-o da forma mais degradante possível. Nessas condições, não vejo como possa ele esperar que eu também o respeite."
Até aí com a cabeça na sombra, o director dos Serviços de Saúde debruçou-se para a frente, os cotovelos apoiados sobre a secretária, e deixou a luz que alagava a sala iluminar-lhe o rosto tenso.
"Seria assim, caro doutor Branco, não se desse o caso de o seu amigo estar envolvido em actividades subversivas."
"Actividades subversivas? O meu amigo é advogado no BNU e, tanto quanto sei, permanece um cidadão livre. Se ele está envolvido em actividades subversivas, porque não o detêm?"
O director fez um trejeito impaciente.
"Isso não sei nem me interessa", retorquiu, voltando a recostar-se na cadeira e devolvendo a cabeça à sombra de modo a ficar com o perfil recortado pela penumbra. "Eu não sou polícia. Não passo de um quadro da administração colonial que está a gerir os Serviços Provinciais de Saúde, nada mais. Agora, eu não nasci burro e sei muito bem que o envolvimento com pessoas ligadas à Frelimo é coisa que só pode dar sarilho."
"Desculpe, mas não estou a perceber. Qual é exactamente a natureza do sarilho em que me meti?"
Floriano pegou nos papéis que tinha estado a ler quando o seu convidado entrou e folheou-os, os olhos a saltitar pelos parágrafos.
"O sarilho, caro doutor", disse, mantendo a atenção presa nos papéis, "é que o doutor Abreu fez um relatório sobre um acto de insubordinação da sua parte enquanto estava de serviço no hospital e expôs ainda acontecimentos posteriores relacionados com esse acto, incluindo o comportamento sedicioso do enfermeiro Nélson, claramente influenciado por si." Levantou os olhos para o subordinado. "É esse o sarilho."
José fez um gesto a indicar os papéis.
"O doutor Abreu explicou que chamou preto ao meu convidado?"
O director dos Serviços Provinciais de Saúde arregalou os olhos, claramente apanhado de surpresa, mas logo readquiriu a expressão impassível que exibia desde o início da reunião.
"Não explicou, nem isso interessa."
"Ai interessa, interessa!"
Floriano pousou de novo as folhas na esquina da secretária e cravou os olhos glaciais no seu interlocutor, como adagas a dissecarem uma vítima.
"O que interessa, caro doutor Branco", rosnou com um ranger de dentes, "são quatro factos."
Exibiu quatro dedos, como se cada um deles fosse um facto. "Primeiro, o senhor estava a confraternizar no hospital com um elemento subversivo durante as horas de expediente. Segundo, o seu superior hierárquico expulsou esse elemento das instalações, como era aliás o seu dever, e o senhor, num acto público de insubordinação, abandonou o seu posto. Terceiro, o enfermeiro Nélson, claramente influenciado pela sua atitude, recusou-se a trabalhar durante dois dias. Quarto, a sua mulher, que é directora da farmácia do estado e que tem responsabilidades acrescidas por via dessas suas funções, não cumpriu uma ordem do director do hospital para aviar uns medicamentos. Ou seja, por sua causa instalou-se no hospital distrital de João Belo um clima de insubordinação que, como calcula, a administração provincial não pode ignorar nem tolerar."