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"No hospital onde eu trabalho não há insubordinação", retorquiu o médico. "Há é prepotência e racismo. "Eu estava a conversar com o meu amigo durante a minha pausa para o café e depois de já ter cumprido as minhas obrigações. Saí do hospital porque, como deve calcular, entre os meus deveres profissionais não consta a obrigação de pactuar com as má-criações do senhor director. O

senhor enfermeiro Nélson fez greve? Fez, sim senhor! E fê-lo porque testemunhou um acto de discriminação racista que, além de ser imoral, me parece ilegal. E a senhora directora da farmácia não aviou os medicamentos? Fez ela muito bem! O senhor director, e não inocentemente, deu-lhe a ordem mas não lhe entregou a requisição. Queria que ela aviasse os medicamentos sem requisição?

Aí sim, estaria a infringir as regras e acabaria punida por isso."

O superior hierárquico manteve-se quieto a fitá-lo, os dedos enlaçados sobre a secretária.

"Está a insinuar que o doutor Abreu quis montar uma armadilha à sua mulher?"

"Eu não estou a insinuar nada, estou meramente a expor o que aconteceu", insistiu José. "Desde que percebeu que eu era amigo do doutor Rouco que o senhor director tem assumido atitudes que me parecem destinadas a provocar uma ruptura. Na própria manhã em que ele expulsou o doutor Rouco do hospital, vi-o escondido na enfermaria a observar o meu trabalho. Só posso presumir que estava a espiar-me para ver se eu chegava ou não a horas, se cumpria ou não escrupulosamente as minhas obrigações."

Floriano curvou os lábios, num trejeito de quem não via qualquer problema no que acabara de ouvir.

"Acho normal", disse. "Fiscalizar e ter mão no pessoal é, que eu saiba, uma obrigação do director."

"Não digo que não", admitiu o médico. "Mas por que motivo só me controla a mim? E porque só o faz desde que se apercebeu de que eu era amigo do doutor Rouco? E por que razão começou também a implicar com a minha mulher? À falta de melhor explicação, só posso concluir que andava era a ver se me conseguia apanhar em falso."

"Isso não sei nem quero saber", impacientou-se o director dos Serviços Provinciais de Saúde.

"Essa conversa, se o senhor a quiser ter, não a tenha comigo, que não sou polícia. Tenha-a com o governador, tenha-a com o ministro, tenha-a com quem quiser, mas não comigo. A mim cabe-me dirigir estes serviços, fazer cumprir os regulamentos, articular-me com os directores dos hospitais e obedecer a ordens superiores."

"Com certeza."

Abriu uma gaveta com um gesto brusco.

"E é justamente por ter recebido ordens superiores que o chamei cá a Lourenço Marques." Tirou do interior da gaveta uma folha dactilografada. "Esta é a sua guia de transferência." Estendeu-lhe a folha. "O senhor vai sair de João Belo."

José pegou na folha e olhou de relance para as primeiras linhas; o seu nome encontrava-se referenciado em maiúsculas impressas a tinta vermelha.

"Posso saber com que base é que..."

"São ordens superiores."

O médico assentou a folha no regaço e, como se estivesse distraído, pousou o olhar nas flores alaranjadas que coloriam uma acácia rubra para além da janela.

"E se eu recusar?"

"Não pode recusar. O senhor doutor, quando foi integrado na administração ultramarina, assinou um documento a comprometer-se ir para onde fosse necessário. Com certeza que se lembra disso..."

"Hmm-hmm", assentiu num murmúrio ausente."Também o enfermeiro Nélson será transferido, neste caso para o posto do Guijá."

José permaneceu impassível, com os olhos fixos no exterior, como se tudo aquilo lhe fosse já indiferente. Apesar da pose, porém, fervia por dentro. Ainda ponderou a possibilidade de argumentar, contrapondo com o facto de ter rubricado o documento com um espírito diferente, em que o critério para as transferências era o da necessidade de serviço, não o de uma punição, e quis defender o enfermeiro, que tal como ele se indignara contra a iniquidade do tratamento a que Domingos fora sujeito no hospital. Mas conteve-se; já nada daquilo lhe parecia relevante. O que tinha de acontecer iria acontecer. O mais importante era perceber o que o esperava.

"Vou para onde, posso saber?"

"Tete."

Movendo a cabeça com lentidão, como se despertasse de um sono letárgico, virou o rosto para o mapa que se encontrava plantado ao lado da secretária.

"E lá para cima, não é?"

Floriano voltou a erguer-se do lugar e aproximou-se do mapa.

"Sim, é no Norte." Indicou um ponto a meio do fio azul de um rio. "Aqui mesmo. Nas margens do Zambeze."

O médico deixou os olhos pregados ao ponto que assinalava Tete, ponderando se devia fazer a pergunta que tinha em mente. Esteve para recuar, uma vez que a matéria era sensível, mas acabou por decidir avançar; se iam para o Norte, tinham de saber o que os esperava.

"Não foi nessa zona que decretaram agora o estado de emergência?"

"Quem lhe disse isso?"

"Está no jornal."

O director apontou uma linha azul que serpenteava pelo mapa e desaguava a norte da Beira.

"O Zambeze é aqui", confirmou. "E, que eu saiba, está tudo calmo. O que apareceu no jornal não passa de mentiras propagadas para criar instabilidade entre as pessoas. Nós não temos de nos ocupar com estas coisas; temos é de fazer o nosso trabalho."

O subordinado respirou fundo; essa também era, em boa verdade, a sua opinião. Além disso havia outras preocupações a agitar-lhe o espírito.

"E a minha mulher?"

O director voltou a sentar-se e deitou a mão ao interior da mesma gaveta, que permanecera aberta. Retirou uma segunda folha dactilografada e estendeu-lha; tratava-se evidentemente de uma outra guia de transferência.

"Desta vez ela vai consigo", anunciou com o tom paternal de quem concede uma benesse. "Mas da próxima segue cada um para o seu lado, percebeu?" Estendeu o dedo, à maneira de um professor a admoestar um aluno malcomportado. "Não se voltem a meter em política!"

O ralhete estava dado e o aviso feito. Sentindo-se injustiçado, José teve de fazer um esforço para não protestar. Ainda pensou em dizer que nunca se metera em política nem era sua intenção fazê-

lo, mas percebeu que era inútil. Precisava de se concentrar no essencial, e o essencial estava impresso no mapa.

"Porquê Tete?", perguntou, a atenção voltando-se de novo para a carta de Moçambique. "Não é para aí que se envia quem se quer punir?"

O director confirmou com a cabeça.

"E um posto maningue chato." Suspirou, talvez no único momento de compaixão que se permitiu. "Lamento, mas são ordens superiores. Devo preveni-lo, caro doutor, de que Tete goza de facto de uma péssima reputação."

"Em que sentido?"

Floriano fechou a gaveta e ergueu-se do seu lugar, indicando desse modo que a reunião estava a terminar. Ajeitou o casaco e lançou um derradeiro olhar ao mapa.

"Chamam-lhe o cemitério dos brancos."

Foi à volta de uma bola de voleibol que Diogo cresceu no Rego da Agua, uma lugarejo de Vila Nova de Gaia conhecido por ser o centro social da freguesia da Madalena. Começou a sua vida de voleibolista pouco depois de voltar de Angola, quando se inscreveu na equipa que o Orfeão da Madalena decidira formar. O clube disponibilizou um campo a céu aberto para os treinos do Toneca Melro, o rijo serralheiro que fora colono em Moçambique e que se tornou treinador dos miúdos nas horas vagas depois do trabalho.