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Era um grupo formidável, o do Orfeão da Madalena. Os garotos treinavam à noite com afinco num terreno de saibro e Diogo batia com tanta força que a bola voava amiúde para o quintal do Veloso, um canalizador que plantara repolhos atrás de casa.

"Vai buscar!", ordenava-lhe o mestre Melro, sempre em pé junto à rede. "Da próxima quero melhor pontaria!..."

E lá ia Diogo galgar o muro e esgueirar-se pelo quintal do vizinho para recolher a bola, saltarinhando entre as couves e as alfaces do Veloso.Aos treinos sucederam-se os jogos e depressa se tornou claro que as figuras principais do seis-base eram Angelino Melro, o filho do treinador, que primava no passe, e o próprio Diogo, a grande estrela da companhia, graças à capacidade de elevação e remate, que se tornou lendária por aquelas paragens.

Angelino era um rapaz de olhar baço e, tal como Diogo, de poucas falas. Esse traço comum, aliado ao facto de ambos terem vivido em Africa, criou entre eles um laço que os aproximou; no Rego da Agua todos sabiam que onde se via um logo aparecia o outro.

Guiada pelos dois craques e sob a batuta sagaz do mestre Melro, a carreira do Orfeão foi meteórica, com a equipa a impor derrotas aos adversários que sucessivamente lhe apareciam pela frente. Começou com o Santo Tirso e terminou com a Académica de São Mamede. No final, o Orfeão da Madalena tornou-se o inesperado Campeão Regional de Aspirantes e ascendeu ao nível seguinte.

Todos na equipa tinham consciência de que o Campeonato Nacional de Aspirantes se tratava de prova a doer e que os adversários seriam do mais forte que havia. Os mais temíveis eram os nomes maiores do desporto do país, Benfica e FC Porto. Como poderia o pequeno Orfeão da Madalena sobreviver ao embate com tais gigantes? O assunto foi acaloradamente debatido nos quatro cafés do Rego da Agua, onde todos se mostravam convencidos de que, pesasse embora o inegável valor do mestre Melro e dos "nossos rapazes", o mais certo era a equipa levar cabazada atrás de cabazada e terminar no último lugar do campeonato.

O sorteio do calendário de jogos era, apesar disso, aguardado com expectativa nas instalações do Orfeão. No grande dia os homens do Rego da Agua convergiram para o local e ficaram a aguardar as notícias, os mais novos com garrafas verdes de Sumol a balouçarem-lhes nas mãos, os mais velhos a languescer sobre as mesas enquanto dedilhavam pacientemente copinhos de bagaço que iam esvaziando aos beijinhos.Por volta do meio-dia tocou o telefone e o mestre Melro foi atender. Era o presidente da agremiação, que tinha ido a Lisboa participar no sorteio. Diogo discutia na altura com Angelino qual seria o melhor adversário para a estreia, mas, no momento em que a conversa telefónica começou, todos voltaram para ali a atenção, suspenderam a respiração e, perscrutando o rosto do treinador colado ao aparelho, esperaram o veredicto.

A fisionomia do mestre Melro permaneceu no entanto inescrutável ao longo de toda a chamada.

O treinador limitava-se a uns secos "sim, senhor presidente" e "muito bem, senhor presidente", pelo que tiveram de suportar a impaciência que os consumia como lenha em lume brando e aguardar a conclusão do telefonema.

Ao fim de um minuto interminável, o mestre Melro desligou o telefone e encarou os rostos expectantes com a face cerrada.

"É o Benfica."

Vista da pequena janela do Dakota em voo de aproximação à pista, Tete não passava de um insignificante aglomerado de casas que o rio, num menear elegante pela savana amarela, contornava como se não quisesse perturbar a cidade. O avião tocou no solo, saltou e estabilizou, rolou pela pista com o nariz voltado para cima, como era imagem de marca dos Dakota, e imobilizou-se na placa diante da pequena torre de controlo.

Só quando a porta se abriu e os passageiros começaram a desaguar para a escada entretanto colada ao aparelho é que o casal Branco percebeu que não haviam chegado a um sítio normal. Um hálito ardente, escaldante como o bafo intenso de um forno, invadiu o interior do avião e desencadeou um coro de suspiros entre os passageiros alinhados no corredor até à porta.

"Não há dúvida", observou um viajante indiano com um sorriso resignado, como se aquela fornalha tivesse uma assinatura inconfundível. "Chegámos a Tete!"

José e Mimicas entreolharam-se, chocados. Já haviam sido avisados de que Tete era quente, mas

assim? Não imaginavam que pudesse haver no planeta, e muito menos em Moçambique, um sítio onde as temperaturas fossem as de semelhante fornalha.

"Puf!", bufou Mimicas. "Que inferno!"

O marido sentia-se estupefacto com o calor; parecia-lhe que o ar poderia a todo o momento entrar em combustão e pegar fogo. Saíram do Dakota aos tropeções e sentiram toda a força do impacto do sol a tostar-lhes a pele; era como se uma jyelha incandescente os queimasse com o seu fôlego. Apanhado de surpresa, José largou um olhar desconcertado, quase suplicante, na direcção da hospedeira da DETA que se despedia dos passageiros.

"Isto é sempre assim?"

A hospedeira encolheu os ombros e manteve os dentes arreganhados num sorriso profissional.

"Bem-vindos a Tete!"

O fedor a transpiração enchia a apertada sala onde aguardaram as malas. O terminal era incrivelmente quente, mas pelo menos ali estavam protegidos do ardor inclemente do sol. Viram as malas serem transportadas pela pista e despejadas na sala das chegadas. Pegaram nas deles e abalaram para o átrio, onde uma multidão aguardava os recém-chegados; era um mar de rostos inquisitivos, brancos, indianos, mulatos e negros, todos suados à espera que saísse quem vinham buscar.

"Doutor Branco!"

José voltou o rosto na direcção de onde viera a voz que o interpelara e reconheceu o homem que se aproximava; era um sujeito pequeno, com o cabelo curto e pequenos óculos rectangulares a enquadrar-lhe um olhar arguto, gelado e afiado, forjado no fogo de segredos inconfessáveis.

Tratava-se do seu companheiro de viagem no Infante D. Henrique, mas já se haviam passado três anos e, apesar do esforço de memória, não conseguiu lembrar-se imediatamente do nome. "Ah!

Olá!"

O homem apertou-lhe a mão e cumprimentou Mimicas.

"Lembra-se de mim?""Claro. Claro que sim." Abanou a cabeça, como se tentasse sacudir o cérebro e desencravar o nome de uma gaveta da memória. "O benfiquista ilustre que jantava connosco no paquete. Como me poderia esquecer? Mas confesso que o nome... enfim!..."

"Aniceto", apresentou-se. "Inspector Aniceto Silva."

"É isso!", exclamou. "Peço desculpa pelo meu lapso. O senhor é da PSP, não é?"

Os lábios finos de Aniceto esboçaram o fio de um sorriso, não mais do que um esgar sem humor.

"Sou polícia, de facto", confirmou, limpando com um lenço bordado as gotas de transpiração que lhe serpenteavam pela testa. "Mas na altura da nossa bela viagem, e considerando a presença na mesa de um indivíduo relacionado com certos meios da oposição, achei por bem não partilhar mais pormenores das minhas funções profissionais. Mas não pertenço aos quadros da PSP. Sou inspector da PIDE e estou agora responsável pelo posto de Tete."

A revelação apanhou José de surpresa. Sabia que a PIDE, a Polícia Internacional de Defesa do Estado, tinha a responsabilidade de vigiar, intimidar e prevenir quaisquer actos que pusessem em causa o regime. Quem criticasse Salazar ou o governo podia ser preso e maltratado pela PIDE, de que se dizia que, em última instância, chegava a assassinar pessoas. Verdade ou não, o facto é que a sua reputação se tornara temível. Ter um pide à espera num aeroporto não era por isso, e com toda a certeza, das experiências mais desejadas por qualquer viajante.