"Ah!... O senhor é... da PIDE?!", gaguejou. "Há... há algum problema?"
O rosto do homem, até aí amigável, endureceu de um momento para o outro.
"O senhor está preso!"
A ordem foi dada num tom firme e seco. O médico vacilou, abalado com o que ouvira, sem perceber o como nem o porquê. A mulher agarrou-se a ele, como se pudesse impedir o que inevitavelmente se sucederia a uma ordem assim dada por uma pessoa daquelas.
"Sou acusado de... de quê?"
Aniceto soltou uma gargalhada ruidosa e, num gesto apaziguador, pousou-lhe a mão no ombro.
"Eh, pá! Esta resulta sempre!"
"Perdão?"
"O senhor acabou de ser vítima da minha piada favorita, doutor!", revelou o inspector da PIDE
com um esgar divertido. "Sempre que digo isto, as pessoas ficam pálidas! Vá-se lá saber porquê!..."
O casal acompanhou a risada com uma gargalhada breve e nervosa, embora sobretudo aliviada.
"Não há dúvida", observou José, balouçando afirmativamente a cabeça. "O senhor é impagável!"
Aniceto ainda se ria.
"E boa, não é? Nunca falha!" Mais gargalhadas. "Vocês haviam de ver a vossa cara!"
Deixando o homem da PIDE gozar o momento, o casal suspirou de calor e alívio e voltou a pegar nas malas. Fizeram ambos tenções de prosseguir caminho, embora não soubessem exactamente para onde. Estaria alguém do hospital à sua espera? Haveria táxis lá fora? Para onde se deveriam dirigir?
"Bem, senhor inspector", disse José. "Vamos andando. Foi um prazer..."
"Espere aí, doutor", travou-o Aniceto. "Eu vim cá para vos levar a casa."
"O senhor?!"
"Sim, eu. Porquê? Não me diga que tem alguma coisa contra mim!..."
"Claro que não", apressou-se o médico a esclarecer; a última coisa que queria era ofender um pide. "Mas estava à espera que houvesse aqui alguém do hospital ou dos Serviços de Saúde. Ser um inspector da PIDE a fazer-nos a recepção... enfim, não é normal!"
"Ó doutor, não estamos na Metrópole!", exclamou o inspector. "Isto é uma terra pequena e temos de nos ajudar uns aos outros. O director do hospital teve de ir ao Zobué e não pôde vir. Vim eu."
O calor era insuportável e desfez qualquer esboço de resistência. O casal só queria sair dali e chegar à sua nova casa.
"Muito bem", aceitou José. "Vamos para onde?"
Aniceto Silva deitou um olhar às malas que os dois carregavam.
"Eh, pá. Isso parece pesado." Voltou-se para trás e ergueu a mão. "Ó Chico! Anda cá!"
Um indivíduo alto e muito encorpado aproximou-se deles; tinha ar de andar pelos quarenta e tal anos, talvez até cinquenta. Percebia-se que se tratava de um homem rude, a face sulcada por rugas de quem já se havia confrontado com o pior da vida.
"Este é o meu melhor operacional", anunciou o inspector quando o matulão se chegou a eles. "O
Francisco Latino andou na guerra de Espanha e noutras confusões ainda piores. O doutor já o conhece?"
Francisco fitava José com atenção, como se o estudasse.
"Não", disse o médico. "Nunca tive esse prazer."
"No entanto, o Chico conheceu os seus pais", declarou Aniceto. "Nunca lhe falaram dele?"
A revelação suscitou um esgar de admiração no recém-chegado.
"A sério? Quando é que se conheceram?"
Francisco respirou fundo e mudou de perna de apoio, como se o assunto o deixasse pouco à vontade.
"Foi há muito tempo", disse com secura, manifestamente sem vontade de se alongar no tema.
"Histórias antigas, que já não interessam a ninguém."
"Ah, eu cá acho as histórias antigas fascinantes", atalhou o inspector da PIDE. "Aliás, também eu conheci os seus pais."
Mais uma novidade a surpreender José.
"Não me diga!"
"É verdade! Cruzámo-nos em Lisboa e em Penafiel." Indicou o subordinado com a cabeça. "Mas, como diz aqui o Chico, são histórias antigas, que, apesar de curiosas, já não interessam a ninguém."
Apontou para as malas. "Chico, arranja aí quem nos traga as malas dos senhores doutores!..."
A viagem do aeroporto, situado em Chingodzi, até Tete foi relativamente curta, mas demorada.
A estrada era de terra batida avermelhada. Parecia pó de tijolo, varrida por sucessivas nuvens de poeira que as viaturas erguiam a caminho da cidade, como se os pneus fossem tubos de escape. A paisagem apresentava-se plana e seca, dominada por árvores gigantes com enormes raízes e troncos largos e rudes, que davam a impressão de músculos em esforço. As copas estavam despidas, com os ramos nus espetados em todas as direcções; parecia um emaranhado de arames.
Os dois Branco nunca haviam visto coisa igual.
"Que árvores são estas?", quis saber Mimicas.
O inspector fixou a atenção numa árvore monumental mesmo ao lado da estrada.
"Embondeiros."
Além dos embondeiros, plantados como esculturas gigantes até onde a vista alcançava, uma outra característica distinguia a paisagem: ao longo da berma da estrada viam-se ocasionalmente pequenos montes cónicos alaranjados, alguns maiores do que uma pessoa, e que os recém-chegados presumiram tratar-se de construções de formigas.
"Térmitas", corrigiu Aniceto Silva. "Chamam-lhes morros de muchém. Não se metam aí. Noutro dia um gajo passou um tractor por cima de um desses morros e as térmitas saíram lá de baixo aos milhões e comeram-no vivo."
"Está a brincar!..."
"Se eu não tivesse visto o que dele restou, não acreditaria."
Impressionada com a história e incomodada com o calor que a sufocava dentro da viatura, Mímicas abriu a janela e pôs a cabeça de fora. Tentava refrescar-se ao vento, mas o ardor cruel do sol e a poeira asfixiante obrigaram-na a mudar de ideias.
"Que calor horrível!", queixou-se. "Sabe qual é a temperatura?"
O inspector virou a cabeça para trás.
"Estão quase cinquenta graus."
A revelação deixou os dois recém-chegados literalmente boquiabertos.
"Cinquenta?!"
"A sombra", esclareceu Aniceto. "Porque ao sol está muito mais calor." Fez um gesto a indicar a paisagem em redor. "Tete é o ponto mais quente de África a sul do equador. Pior só o deserto do Sara. Às vezes o calor é tanto que penso que o Zambeze está prestes a entrar em ebulição."
"Que horror!"
O inspector da PIDE passeou os olhos pela paisagem seca.
"Iá, as coisas aqui são maningue agrestes", reconheceu. "Mas é um lugar com história.
Livingstone passou por Tete. Capelo e Ivens também." Suspirou com nostalgia. "Vocês chegaram à África profunda."
A estrada inclinou-se para baixo e, logo adiante, depararam com vários automóveis estacionados desordenadamente, alguns mesmo à beira das águas serenas e lamacentas do rio. O
Land Rover da PIDE imobilizou-se e os ocupantes apearam-se, juntando-se à multidão que aguardava perto dos automóveis ou à sombra das micaias. O largo caudal do Zambeze cortava a estrada, separando os carros do casario que se estendia pela outra margem; evidentemente a cidade de Tete.
"Que se passa?", perguntou José. "O que estamos aqui a fazer?"
O inspector indicou uma estrutura que deslizava pachorrentamente a meio do rio; parecia uma jangada metálica, larga e grotesca, e vinha apinhada de automóveis e com um camião.
"Estamos à espera do batelão", explicou. "E a única maneira de chegar a Tete."
Permaneceram longos minutos na margem a observar a aproximação e a manobra de acostagem do batelão. O ardor ao sol era tão infernal que até o rio parecia transpirar. Uma vez ancorada a estrutura, os automóveis e o camião saíram e os veículos que se encontravam na margem do Matundo, do lado oposto à cidade, entraram para os lugares que vagaram, dispondo-se numa arrumação milimétrica ao longo da plataforma flutuante.