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Quando o parqueamento ficou lotado, a passadeira das viaturas foi retirada e a embarcação reiniciou a lenta travessia do Zambeze. O ar tornou-se mais fresco, graças à brisa fluvial que soprava refrescante e rente às águas, e os passageiros aproveitaram aquele bálsamo para se abeirarem das bordas da estrutura e contemplarem a paisagem, tranquila no meio do rio e embalada pelo ronronar monótono e ritmado do motor do batelão.

"Estive a observar a documentação sobre o hospital e reparei numa coisa estranha", observou José. "O director é um cirurgião."

Aniceto Silva assentiu.

"Assim é, de facto. O que tem isso de estranho?"

"Os regulamentos dos Serviços Provinciais de Saúde estabelecem que o director de um hospital é obrigatoriamente um clínico geral. Só na ausência de um clínico geral pode um médico de especialidade assumir a direcção."

"O doutor Martins, embora cirurgião, é o único médico do hospital."

José inclinou a cabeça.

"Era", disse, sublinhando a palavra. "Agora também estou cá eu. E sou de clínica geral."

O inspector da PIDE retirou os pequenos óculos do rosto e lançou um bafo sobre as lentes, humedecendo-as. Depois esfregou-as com o seu pequeno lenço bordado.

"Estou a ver onde quer chegar", murmurou enquanto limpava as lentes. "Acontece que as suas amizades, mais os acontecimentos em João Belo, constituem um obstáculo sério a que, neste caso, se aplique o regulamento. Por instrução superior ficou determinado que o doutor Martins continuará a ser o director, apesar do que o regulamento estabelece." Guardou o lenço e voltou a encavalitar os óculos no nariz. "Espero que não veja inconveniente nisso."

O médico encolheu os ombros.

"Nenhum", disse. "Queria era perceber a situação."

Tete revelou-se uma cidade tão poeirenta quanto os seus arredores. As ruas não eram mais que passagens de terra batida e as pessoas andavam por toda a parte descalças ou de sandálias. Um aroma a erva queimada parecia pairar em permanência no ar, tão omnipresente quanto a poeira fina e o bafo de calor seco e impiedoso.

O Land Rover da PIDE passou pelo cruzamento do Hotel Zambeze e estacionou no início de uma rua que subia em curva. O inspector Silva saltou para fora, fazendo sinal aos recém- chegados e a Francisco de que tirassem as bagagens.

"O hospital e a farmácia são no alto desta rua", revelou. "Como vêem, vão ficar os dois relativamente perto do trabalho."

O casal Branco contemplou o edifício assinalado pelo inspector. Tinha dois pisos, com a fachada em curva ocupada por uma longa varanda. Seguiram o seu anfitrião, que os conduziu por umas escadas do quintal para o primeiro andar.

"É aqui."

O apartamento era pequeno, mas servia perfeitamente. Dispunha de um grande quintal coberto de árvores de frutos, cujas copas forneciam amplas zonas de sombra, e a varanda arqueada tinha uma vista panorâmica para a rua.

"Presumo que se sintam cansados da viagem", observou Aniceto Silva. "Vou deixar-vos instalarem-se e repousar um bocadinho. Depois o que gostariam de fazer? Querem passear ou conhecer o hospital?"

"Não se incomode connosco."

"Não incomodam nada. Prometi ao doutor Martins que, considerando a ausência dele, vos acolheria com todas as regras da hospitalidade e vou cumprir a minha missão até ao fim. Ele deu instruções à enfermeira-chefe de que vos mostrasse o hospital e a farmácia, mas vocês é que decidem o que querem fazer."

Os dois entreolharam-se. A viagem fora cansativa, mas a verdade é que não lhes apetecia nada ficar fechados em casa. Se tinham curiosidade de conhecer os locais onde iriam trabalhar, porque não aproveitar o convite?

"Então está bem", concordou José. "Descansamos uma fiorita e depois vamos lá espreitar o hospital."

Na ausência do director, Aniceto Silva mostrou-se meticuloso nas suas responsabilidades de anfitrião. Depois de dispensar Francisco, acompanhou-os nessa tarde numa primeira visita ao hospital e à farmácia. Subiram a rua onde já residiam e desembocaram numa rotunda poeirenta no alto da colina.

Um bonito edifício branco dominava a rotunda com uma escadaria central e uma varanda ao longo de toda a fachada, as quinas acima da porta, uma bandeira portuguesa a esvoaçar num mastro e a palavra Hospital acima das armas lusitanas. O Land Rover contornou um círculo ajardinado e estacionou diante da escadaria. No momento em que saíram da viatura viram a figura minúscula de uma freira em hábitos azul-claros descer na sua direcção com um sorriso acolhedor.

"Bien venidos a Tete!", saudou-os ela numa mescla bizarra de português e castelhano. "Chamo-me Lúcia y soy la enfermei- ra-chefe do hospital. El doutor Martins está no Zobué y pediu- -me para hacer las honras da casa. Bien venidos! Espera-vos mucho trabajo."

"Uma espanhola por aqui?", admirou-se José.

"Posso ter nascido en Espana", empertigou-se a irmã Lúcia, "pêro soy una cidadã dei mundo."

A freira espanhola guiou-os pelos corredores do hospital, mostrando-lhes as instalações e as diferentes valências. Por toda a parte cheirava a álcool e éter, odor familiar para quem frequentava aqueles ambientes desde os tempos da faculdade. Começaram pelas enfermarias, passaram pelas urgências e percorreram a radiologia, o laboratório de análises, a estomatologia, a fisioterapia e a reanimação.

José sentia-se surpreendido por ver um hospital português apetrechado com tantas valências numa terriola perdida no meio de África e fez a observação em voz alta.

verdad", concordou a irmã Lúcia. " Pero ainda vamos tener mais valências."

"A sério?"

"No próximo ano queremos abrir la maternidade."

"Onde fazem agora os partos?"

A freira fez-lhes sinal de que a seguissem pelo corredor.

"Los partos normales são feitos na enfermaria", disse, conduzindo-os a uma sala com uma mesa no centro. " Pero las cesarianas são aqui, em el bloco operatório." A sala cheirava a desinfectante e havia poderosas lâmpadas sobre a mesa de operações. el único bloco operatório dei distrito", revelou a espanhola com uma mistura de orgulho e desânimo. "El director trabaja aqui."

O médico recém-chegado contemplou a sala, surpreendido com o que vira.

"Sendo até agora o único médico do hospital, o senhor director conseguia responder a todas as necessidades?"

A irmã Lúcia estalou a língua e fez uma careta que lhe enrugou a face larga.

"D/os mio, nem mismo com cien médicos seria posible dar respuesta a todas las necessidades."

Fez uma pausa, buscando a palavra que melhor exprimia o que pensava. " El trabajo é colossal."

O jantar decorreu à luz de lanternas no quintal da casa de Aniceto Silva. O director distrital da PIDE convidou para a ocasião as principais figuras de Tete, como o governador, o intendente, o director das Obras Públicas, o director da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze e o comandante da polícia, mais as respectivas esposas. De todas estas figuras, apenas o chefe da PSP e a mulher eram da idade do casal recém- chegado, pelo que José e Mímicas se aproximaram mais do tenente António Trovão e da sua Carolina, uma rapariga alta e vistosa que não parava de embalar um bebé.