"O meu Nuno nasceu aqui em Tete", disse ela, beijando-o na fronte. "Mas, Deus me perdoe, não me volto a sujeitar arestas condições. Tive o parto na enfermaria!"
"Pois é", assentiu o médico. "Mas disseram-me que no próximo ano vamos estar apetrechados com uma maternidade."
"Mesmo assim! Se tivermos mais algum filho, sabem o que faço? Meto-me no avião e vou a Lourenço Marques dar à luz!"
"Não sei se a DETA deixa uma mulher em estado de gravidez tão adiantado entrar no avião", contrapôs José. "Creio que existem umas regras para essas situações, de modo a impedir partos lá em cima."
O tenente António Trovão, que acompanhava a conversa em silêncio, remexeu-se na cadeira.
"Quem disse que a DETA não deixa?", interveio. "Ai deixa, deixa!", exclamou com um sorriso, puxando dos galões de chefe da PSP. "Nem que eu tenha de dar ordem de prisão ao comandante do avião!"
No final desse longo primeiro dia, e considerando que estava cumprida a sua missão de acolhimento, o inspector Silva levou o casal Branco à sua nova casa. Despediu-se à porta e rodou sobre os calcanhares, metendo-se no carro.
"Espere!", chamou José.
Aniceto Silva ligava já a ignição e espreitou para fora.
"Passa-se alguma coisa?"
O médico inclinou-se sobre a janela do jipe e examinou-lhe a face. Depois apontou-lhe para o meio da testa.
"Tem aqui um sinal de que não estou a gostar nada."
"Um sinal?"
José voltou-se para a mulher.
"Ó Mímicas, já viste isto?"
A farmacêutica aproximou-se e, enfiando a cabeça pela janela, quase colou os olhos preocupados ao rosto do inspector da PIDE.
"Iá, pois é! O coiso está-lhe a coisar a testa!..."
"O que se passa?", inquietou-se Aniceto. "Há algum problema?"
O médico manteve a atenção presa na testa, perscrutando-a com cuidado profissional.
"Ó inspector, já alguma vez foi visto por um oncologista?"
Aniceto Silva arregalou os olhos, o terror a trepar-lhe pelo rosto.
"O quê? Um onco... um oncologista?" Apalpou a área da testa que os seus dois interlocutores observavam fixamente. "Porquê, doutor? Porque... porque diz isso?"
"Não sei não!", murmurou José com uma careta, como se falasse consigo mesmo. "Não é por nada, mas parece-me que isto é um tumor!..."
"Ai é, é!", confirmou Mimicas. "E dos malignos! Já vi pacientes coisarem-se com tumores assim."
Abanou a cabeça com uma expressão condoída. "Ah, coitado!"
O marido acompanhou-a no gesto de cabeça.
"Isto é muito mau."
Ainda sentado dentro do Land Rover, Aniceto vacilou no assento, chocado com o que escutava.
"O quê? O quê?"
Com um olhar a transbordar de compaixão, o médico pousou-lhe a mão solidária sobre o ombro.
"Esta resulta sempre."
"Como?"
José piscou-lhe o olho.
"O senhor acabou de ser vítima da minha piada favorita, inspector!", afirmou, saboreando a vingança. "Sempre que digo estas coisas as pessoas ficam pálidas! Vá-se lá saber porquê!..."O dia do jogo foi emocionante no Rego da Água, sobretudo quando os rapazes do Orfeão viram aparecer no cruzamento diante do clube o autocarro vermelho e branco com a grande águia dourada. Era coisa imponente de se ver! Viera da longínqua capital, fizera trezentos quilómetros, andara durante seis horas pela Nacional 1 - tudo para ir ali jogar com a equipa da Madalena. Que emoção!
Ainda mais intimidante foi observar os jogadores da formação adversária a descerem do veículo; vinham altivos e impecavelmente equipados de encarnado-vivo, a águia ao peito a dizer Et pluribus unum! e o símbolo da Adidas ao lado. Que contraste com os do Orfeão, onde tudo era cosido pelas mães em casa e cada um se equipava à sua maneira; uns de amarelo, outros de verde, Diogo de branco.
Mas o que mais impressionou a rapaziada anfitriã foi o equipamento que os jogadores do Benfica traziam nos pés.
"Já viste aquelas sapatilhas?", perguntou Angelino, incapaz de tirar os olhos delas.Os adversários calçavam o último grito da moda na modalidade, sapatilhas de marca tão sofisticadas que apenas se encontravam nas fotografias dos jornais e das revistas da especialidade.
"Então não?", disse Diogo. "Onde as terão arranjado?"
Angelino deu-lhe uma forte palmada nos ombros, que quase o desequilibrou.
"Isto é o Benfica, grande morcão! Eles até têm o Eusébio!"
"Sim, mas onde terão arranjado as sapatilhas? Nunca as vi à venda em parte nenhuma. Nem em Cedofeita!..."
O amigo não tirava os olhos das sapatilhas dos recém-chegados, que se desequipavam já para o aquecimento.
"Isto só há à venda na Alemanha", sentenciou Angelino. "E preciso muita massa para as comprar."
O mestre Melro chamou o seu pessoal e a equipa foi aquecer no outro lado do campo. Os jogadores do Orfeão procederam a corridas e toques de bola, mas ao longo de todo o exercício mantiveram a cabeça voltada para os adversários, intimidados com o seu ar aristocrático, mais o equipamento catita, o que irritou o treinador.
"Porque estais a olhar para ali, carago?", rugiu mestre Melro. "Por acaso vedes entre aqueles paneleiros algumas gajas boas?"
O jogo começou mal. Diogo estava nervoso e falhou alguns blocos defensivos. Também os tempos de salto não lhe saíam bem, perdia ângulo para aplicar as suas poderosas direitas, isto apesar de os passes de Angelino apresentarem a perfeição do costume. Por tudo isto, o Benfica ganhou com facilidade o primeiro set e o craque do Orfeão teve de ouvir uma descompostura do treinador.
"O que tens tu hoje, canudo? Estás com medo daquelas meninas? Faz favor de ir para o campo e jogar o que sabes!"
Mas o segundo set também começou mal, com Diogo a falhar mais dois remates e o Benfica a somar pontos. A cabazada anunciada estava já em curso e os espectadores da casa mergulhavam em depressão. Que vergonhaça! Mas o pior eram os efeitos daquela razia nos próprios jogadores do Orfeão, e em particular no seu maior craque. Além do nervosismo, as dúvidas apoderavam-se do jogo de Diogo, roubando-lhe o que lhe restava da confiança. O adversário acumulava pontos atrás de pontos até chegar ao momento crítico do set.
Nessa altura, mal contendo a frustração pela sequência de passes que o colega de equipa desperdiçava, Angelino voltou-se para trás e cravou os olhos furiosos nele.
"Diogo, vou dar cabo de ti!", rosnou entre dentes. "Os cabrões estão-se a rir da malta!"
Aquela censura ligou um interruptor no jogo de Diogo. Espicaçado pela humilhação e por se aperceber do embaraço dos colegas de equipa e dos espectadores, o rematador do Orfeão soltou de repente o seu voleibol e conquistou uma mão-cheia de pontos até o Benfica, apesar de confrontado com inesperadas dificuldades, conseguir fechar o segundo set a seu favor.
O Orfeão da Madalena perdia por 2-0, mas aquele foi o ponto de viragem do jogo. Primeiro de raiva, depois com crescente confiança e segurança, Diogo guiou a equipa para a vitória no terceiro e no quarto sets, e fechou concludentemente o quinto set perante a incredulidade e a euforia de todos os que enchiam o recinto e mal queriam acreditar no milagre que se produzia diante dos seus olhos. A equipa da terra, os miúdos sem equipamento e que treinavam à noite no anexo coberto de pó de tijolo, haviam vencido o grande Benfica.