A partir daí tudo se tornou possível. Galvanizados pela surpreendente vitória sobre os encarnados, os jogadores do Orfeão acreditaram que podiam fazer o impossível e derrotaram consecutivamente o FC Porto e o Lisboa Ginásio. Perante a estupefacção geral, a equipa sagrou-se Campeã Nacional de Aspirantes em voleibol.O ritual matinal que o casal Branco havia instituído em João Belo foi transferido para Tete. Acordavam ambos pelas seis da manhã e, para aproveitar a única hora relativamente fresca do dia, tomavam o pequeno-almoço na longa varanda do apartamento. Saíam de casa de seguida e metiam-se no Opel branco de tejadilho azul para subir a rua até ao complexo formado pelo hospital e pela farmácia.
Depois de se despedir da mulher, José ia para o seu gabinete vestir a bata e, na companhia da irmã Lúcia, fazia às sete em ponto a visita às enfermarias para saber como os doentes haviam passado a noite e lidar com os casos que requeriam maior atenção. Às oito voltava ao gabinete para as consultas, muito concorridas, por só existirem dois médicos na cidade.
"Hoje tenemos doentes que vieram de muy lejos", anunciava a freira diariamente, procurando sensibilizá-lo para esses casos. "Ay, Dios mio! São muchos."
Além daqueles que viviam em Tete ou nos arredores, muitos pacientes vinham de locais com designações estranhas, como Mucumbura, Caldas Xavier, Furancungo, Fingué, Songo, Zum-bo, Magoe. De início eram apenas nomes que se sucediam em desfile e que ao médico nada diziam, mas um dia José pediu ao engenheiro Pontes, o director da Missão de Fomento do Zambeze, um mapa pormenorizado do distrito e pregou-o na parede do gabinete, assinalando com alfinetes vermelhos os pontos onde existiam pequenos postos de assistência médico-sanitária, como Chioco, Changara, Mandié, Zobué, Vila Coutinho, Furan^ungo, Fingué e Mutarara.
A partir desse dia começou as consultas com um novo procedimento. Depois de perguntar o nome queria sempre saber qual a terra de origem do paciente. Quando ouvia a resposta levantava-se e ia ao mapa verificar as distâncias em relação ao posto de assistência médico-sanitária mais próximo ou em relação a Tete. Depois voltava a sentar-se e tomava nota num pequeno caderno.
"Eles vêm mesmo de muito longe", observou ao fim de algum tempo, após mais uma manhã de consultas. "Se eu não visse, não acreditava."
"Yo tinha-lhe dito, doutor", exclamou a irmã Lúcia, quase feliz por ver reconhecida a sua razão.
"Vêm de muy lejos."
O médico apontou para os alfinetes vermelhos espetados no mapa.
"Mas alguns têm postos de assistência sanitária nas terras onde vivem ou perto delas", observou. "Por que motivo mesmo assim vêm a Tete? Porque não se tratam lá?"
"Eles tratam-se, doutor. Pero existem muchas razões para virem para cá. Algunos desses postos não têm médicos. Solo enfermeiros. Y mismo quando existem médicos esses postos não dispõem de
las condiciones adequadas. Por ejemplo, não têm laboratório de análises ou máquina de raio X. Ou
necesitan de cirurgia y solo em Tete existe um cirurgião. Ou..."
"Pronto, pronto, já percebi", atalhou José. "Mas como chega esta gente cá?"
"Oh, de todas las maneiras! Algunas veces são los postos médico-sanitários que, percebendo que
no tienen meios para lidar com essas situaciones, enviam las pessoas para Tete. Noutros casos são elas próprias que se metem al camino. Vienen de machibombo, de canoa, a pé. Já vi, com os meus próprios o/os, uno que veyo de Caldas Xavier numa ginga."
"Ginga?"
"Bicicleta." Abanou a cabeça. "Ay, pobrecito! Tinha febre- -amarela e veio a gingar de tão lejos.
Parece impossível, no?"
Este problema impressionou o médico. O ideal seria equipar melhor os postos médicos ou de enfermagem espalhados por todo o distrito, mas tinha plena consciência de que tal era impossível; havia falta de médicos e de enfermeiros por toda a província e, mesmo que esse problema não existisse, só os custos de um tal empreendimento, que teria de incluir investimento em pessoal e em equipamento, seriam exorbitantes e incomportáveis para o orçamento do governo central.
O assunto preocupava-o tanto que decidiu discuti-lo com o director do hospital.
"Porque não arranjar ambulâncias?", sugeriu. "Era uma forma de contornar o problema."
"Nós já temos ambulâncias", observou o doutor Martins.
"São só duas. Precisávamos de mais."
O director olhou para o mapa do distrito de Tete e fez uma careta, nada persuadido com a solução.
"Eu podia convencer Lourenço Marques a dar-nos mais uma ou duas ambulâncias", admitiu.
"Mas isso não resolvia o problema. Já viu o tamanho de todo o distrito?" Fez um gesto a indicar o mapa. "Olhe para isto. São cem mil quilómetros quadrados! Isso é equivalente a... sei lá!, à Metrópole, por exemplo! Já viu? E como se estivéssemos em Coimbra e tivéssemos de ir prestar assistência a Faro e a Bragança! E isto num território que só pode ser coberto em picadas!" Abanou a cabeça, enfático. "As ambulâncias estão totalmente fora de questão!"
A conversa com o director do hospital deixou José a contemplar longamente o mapa. Martins tinha razão, percebeu com desânimo. O problema não se resolvia com mais médicos, que não havia; nem com mais postos, que eram caros; nem com mais e melhor equipamento, de custos proibitivos; nem sequer com mais ambulâncias, que não poderiam mover-se pelas picadas esburacadas de um território tão vasto. O distrito era maior do que a própria Metrópole! Como cobrir tal imensidão e trazer de todos os recantos para Tete os casos que requeriam maiores cuidados?
Teve de se render. Por muito que lhe custasse, o problema simplesmente não tinha solução.
Naquela manhã chegou com olheiras ao hospital. Tinha na véspera ido com a mulher a casa do tenente Trovão para uma patuscada que se prolongara para além do previsto, pelo que acabara por se deitar tarde.
Faltavam três minutos para as sete quando entrou no gabinete e, sempre determinado a fazer a inspecção das enfermarias às sete em ponto, vestiu apressadamente a bata. Lançou um olhar à agenda pousada sobre a secretária, aberta nas páginas referentes à última semana de Setembro de 1964, e praguejou baixinho. Vinha aí a época das chuvas, sabia, e seria mais difícil os doentes percorrerem grandes distâncias para receberem ajuda no hospital.
Apercebeu-se nesse instante de que a porta se abria atrás dele e divisou a figura minúscula da irmã Lúcia a esgueirar-se pela entrada.
"Doutor, o senor já sabe de las notícias?"
"Bom dia, Lúcia", disse, como se sublinhasse que os cumprimentos deveriam sempre ser a primeira coisa que se trocava pela manhã. "Está tudo bem?"
"Las notícias, doutor. Já escuchou?"