A insistência da irmã Lúcia na pergunta, e o facto de lhe parecer tão preocupada que nem se dignou devolver a saudação, suscitaram-lhe estranheza.
"Que notícias?"
A freira espanhola espreitou de relance o canto do gabinete onde se encontrava um móvel de rádio.
"E mejor escuchar, doutor."
José ainda vacilou, determinado a cumprir as suas obrigações; fazia questão de iniciar a ronda às sete em ponto, como era seu hábito. No entanto, a expressão do olhar da irmã Lúcia indicava-lhe que talvez fosse melhor seguir a recomendação. Respirou fundo e, resignado, acocorou-se diante do aparelho. Sentiu a freira sair do gabinete, decerto para preparar a inspecção à enfermaria, mas não se importou; preferia ouvir telefonia sozinho. Carregou no botão do rádio e escutou uma voz familiar.
... que lavas no rio E talhas com o teu machado As tábuas do meu caixão. Pode haver quem te defenda Quem compre o teu chão sagrado Mas a tua vida não.
Embalado pela melodia, ele próprio cantarolou com Amália as estrofes de "Povo que lavas no rio", até que a música acabou e se ouviram duas vozes masculinas a falar sobre um som de fundo que parecia ser o lento marulhar do mar.
"Ontem fui à praia com a Isabel", anunciou a primeira voz.
"Az sim?", admirou-se a segunda. " então?"
"Ela estava deitada na areia, toda tostadinha" , retomou a primeira. "A Isabel mexia a coxa e eu só olhava para ela, ela a mexer-se e eu a olhar. Olha, não aguentei mais: saltei para cima dela e comi-a toda!" "O quê? A Isabel?"
"Claro! E uma galinha das Mahotas Avícola!", concluiu o primeiro. " Avícola das Mahotas: as melhores galinhas, o melhor sabor!"
O segundo anúncio gabava as virtudes da Gazcidla, "uma chama viva onde quer que viva", e o terceiro era aquele que antecedia sempre o sinal horário.
"Que horas são?", perguntou uma voz na rádio em tom casual.
"São horas de beber um copo de Laurentina preta", sentenciou uma segunda voz. " Todas as horas são boas para beber um copo de Laurentina preta!"
Veio o sinal horário e apareceu uma nova voz, esta em directo.
"São sete horas da manhã", anunciou. " Bom dia, está a sintonizar o Rádio Clube de Tete. Agora as notícias."
Seguiu-se o indicativo do noticiário.
"Prosseguem os combates no Congo", anunciou a mesma voz. "Os rebeldes congoleses tentam controlar o acesso a Stanleyville, tendo ontem de manhã..."
"Que está hacendo?"
Era a irmã Lúcia que espreitava à porta do gabinete. A pergunta embatucou o médico.
"Bem, estou a seguir a sua sugestão", explicou. "Não me tinha aconselhado a ouvir a rádio?"
A freira fez com a língua um estalido impaciente e acocorou- se diante do aparelho, rodando o botão de sintonização.
"No es la rádio portuguesa!", disse em tom de repreensão. "Essa nunca conta nada. Es la BBC!"
O receptor emitiu uma sucessão de zumbidos e assobios até se fixar na frequência dos Serviços Portugueses da estação britânica.
"... anunciou ter atacado o posto administrativo do Chai, em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique", disse uma voz em tom solene e pausado. " Fonte da Frelimo na Tanzânia disse que esta foi a primeira acção armada lançada pelo movimento para libertar Moçambique do colonialismo português. A mesma fonte revelou que a acção envolveu ainda a destruição de pontes em Mocímboa da Praia, Esposende, rio Mueda, Nangade e Machoma e cortes em linhas telefónicas. Recorde-se que toda a região a norte do Zambeze se encontra em estado de emergência desde Abril, tendo os contingentes portugueses sido reforçados por dois mil e quinhentos homens. No mês passado um outro grupo rebelde matou um padre da Missão de Nangololo e feriu um africano a tiro de canhangulo."
As semanas que se seguiram a estes novos incidentes foram de inquietação, com os boatos a cruzarem-se em todas as direcções. A vida prosseguia com normalidade, é certo, e os jornais e rádios limitavam-se às notícias da actualidade geral, dominada por combates contra os vietcongues a sudoeste de Saigão, pelo anúncio da União Soviética de que não pagaria as operações da ONU no Congo, em Chipre e no Médio Oriente e pela goleada de 4-0 do Benfica ao Sporting, devidamente comemorada com mais uma patuscada em casa do inspector Silva.
Dir-se-ia à primeira vista que nada mudara, mas não era bem assim. As informações orais não confirmadas cruzavam-se nas conversas em voz baixa; havia até quem dissesse que estava iminente um ataque terrorista de grande envergadura contra a cidade de Tete, afirmação na qual ninguém verdadeiramente acreditou até ao dia em que, dois meses depois dos primeiros incidentes, a irmã Lúcia apareceu no gabinete de José Branco com a notícia de que tinha ocorrido um ataque no distrito de Tete, o primeiro de que havia notícia.
"Foi em Mutarara", esclareceu ela. " La noche passada."
"Quem lhe disse isso?"
"Un padre espanol que conheço."
Por esta altura já o médico conhecia quase de cor o mapa que tinha pregado à parede, mas mesmo assim foi espreitá-lo.
"Mutarara é aqui, no Sul do distrito", indicou. "Junto ao Malawi. E evidente que os tipos se infiltraram pela fronteira."
A freira espanhola mordeu o lábio inferior, os olhos a medirem a distância entre Tete e Mutarara.
"Acha que vão atacar nuestra ciudad, doutor?"
José encolheu os ombros.
"Quem sabe?"
Havia, porém, duas pessoas que sabiam. Ou pelo menos se elas não soubessem ninguém mais saberia. Uma era o comandante da PSP, com quem privava habitualmente. Convidou nessa noite o casal Trovão para jantar, mas o tenente não dispunha de muitos pormenores sobre o que sucedera em Mutarara.
"Deram uns tiritos contra o posto de sentinela", limitou-se a dizer. "O nosso pessoal respondeu e os terroristas cavaram."
"Ninguém foi atingido?"
"Não."
Restava a José tentar a segunda pessoa e a oportunidade sorriu-lhe no domingo seguinte.
Portugal jogava com Esganha, vencedora do recentemente criado Campeonato da'Europa, e o inspector Silva, amante da bola e a exemplo do que fazia nas tardes dominicais de futebolada, convidou-os, a ele e Mimicas e a mais dois casais, para um almoço no quintal ao som do relato da Emissora Nacional.
A refeição foi animada e a tarde coroada com dois golos de Eusébio que garantiram a vitória portuguesa por 2-1, façanha condignamente celebrada no quintal da casa do homem da PIDE com abundantes quantidades de whisky e até de vinho do Porto, em homenagem à cidade onde a partida decorrera.
"A minha Lúcia é que vai ficar chateada por termos dado cabo dos espanhóis", observou José com um sorriso. "Amanhã nem me fala."
"Os gajos não têm que se queixar", contrapôs Aniceto Silva. "Encavámo-los bem. Com este novo seleccionador, o Manuel da Luz Afonso, mais o Otto Glória, somos bem capazes de nos apurarmos para o Mundial."