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Abriu a pasta que tinha pousada no regaço e extraiu uns papéis que estendeu na direcção de Joaquim. "Tomei, por isso, a liberdade de trazer comigo um contrato para inscrever o Diogo como jogador do FC Porto." Apontou para a última página. "Se estiverem de acordo, é só assinar aí em baixo."

Joaquim folheou o documento, maravilhado com o logótipo mágico do seu clube do coração.

Mas a mulher, com o sentido prático que a caracterizava, arrancou-lhe o contrato das mãos e folheou-o, em busca do essencial.

"Quanto é que pagam?", quis saber.

"Quarenta escudos por mês", respondeu o técnico do FC Porto. "Mais transportes."

Lourdes localizou o valor numa das cláusulas a meio da segunda página, mas torceu o nariz.

"É pouco."

O rapaz, sentado em silêncio ao lado do televisor, baixou a cabeça, desanimado com a resposta.

No entanto, o pai, refazendo-se do furto do contrato pela mulher, pigarreou e ergueu o braço, como um aluno a pedir a palavra.

"Eh, lá!", interveio. "Estamos a falar do Porto!"

Lourdes lançou-lhe um olhar de repreensão.

"Pagam pouco, Quim!", insistiu. "O miúdo tem e de ir para a escola, não de andar aos pulos com uma bola. As bolas não educam."

"Mas é o Porto, carago!"

"Nem que seja o Penafiel!..."

Joaquim desferiu uma palmada inesperada na própria coxa, assustando a mulher, o filho e o professor Puga.

"Bardamerda!", vociferou, a alma azul e branca a falar mais alto. "Portista que se dê ao respeito não impede filho seu de ir para o clube! Ainda por cima pagam quarenta paus, carago!... Qual é a dúvida?"As consultas da manhã haviam terminado minutos antes e José Branco despia já a bata quando sentiu um vulto espreitar-lhe pela porta. Desviou o olhar naquela direcção e reconheceu o rosto barbudo do doutor Martins, o director do hospital.

"Posso?"

"Entre", disse José, voltando a atenção para o cabide onde pendurava a bata. "Vai almoçar?"

Martins encostou-se à ombreira e cruzou os braços.

"Vou, pois. Mas primeiro tenho aqui uma visita a quem preciso de mostrar o hospital e gostaria que você nos acompanhasse."

"A minha mulher está à minha espera."

"Telefone-lhe e diga que vai chegar mais tarde. Isto tem uma certa prioridade."

O médico encaixou o cabide com a bata na vara do armário e voltou-se para o superior hierárquico, encarando-o com uma expressão interrogativa.

"Porquê? O que se passa?"

"Ó doutor Branco", disse o director com um leve tom de reprovação, "estamos em 1968, o que significa que o senhor já trabalha neste hospital há quatro anos, e ainda me pergunta o que se passa?"

José girou a cabeça em redor, para se certificar de que não lhe escapava nada.

"Sim, o que se passa?"

"Passa-se Cabora Bassa, doutor. Tem seguido as notícias, não tem?"

"Claro. Parece que sempre vamos construir a barragem."

"Parece, não. Vamos mesmo. O acordo com a Africa do Sul está fechado para erguer a barragem em Cabora Bassa e mais trinta no rio Cunene, em Angola."

José encolheu os ombros, indicando que nada daquilo era novidade para ele.

"E então?"

Em resposta, o doutor Martins afastou-se da ombreira e esticou o pescoço na direcção do corredor.

"Nicole, pode chegar aqui, por favor?"

O som de sapatos femininos a clacarem no piso de cimento antecedeu o aparecimento diante do gabinete de uma mulher alta, com um vestido azul, leve e justo, a combinar na perfeição com o cabelo loiro, tão claro que parecia palha; o que nela chamava mais a atenção, no entanto, era o peito amplo, solto por baixo do tecido, indício manifesto de que não usava soutien.

"Sim, doutor?"

O sotaque da mulher tinha uma estranha musicalidade, como de uma inglesa que falasse português do Brasil.

"Este é o doutor Branco", apresentou-os o director. "Doutor Branco, a doutora Nicole Thorn."

A visitante fitou José com os seus grandes olhos azuis ligeiramente amendoados e sorriu, ronronando como uma gata.

"Muito prazer."

"É sul-africana?"

Ela abanou negativamente a cabeça, embora mantendo o sorriso.

"Rodesiana."

"Mas fala português muito bem..."

"Tirei Medicina em Salisbúria, mas fiz uma pós-graduação em São Paulo, no Brasil."

"E o que está aqui a fazer?"

Nicole abriu as mãos, no gesto conformado de quem expõe uma evidência.

"Ora, o que haveria de ser?"

"Cabora Bassa", percebeu José. "Mas isso não é um projecto com os Sul-Africanos?"

O director do hospital meteu-se na conversa.

"O Consórcio ZAMCO, que está encarregado de executar o projecto, é constituído por empresas sul-africanas, francesas, suíças, italianas e portuguesas", esclareceu o doutor Martins. "Mas os rodesianos vão estar envolvidos na área da segurança e na navegabilidade do Zambeze, além de que também irão utilizar a energia da barragem."

"Com isso tudo ainda fico com a impressão que a senhora é engenheira!..."

A rodesiana soltou uma gargalhada.

"Ainda não. Estou aqui fazendo um levantamento das condições sanitárias da região, para saber o que espera os engenheiros e todo o pessoal ligado à obra e determinar as necessidades."

"Estou a ver", disse o médico. "Encontra-se portanto aqui numa visita de inspecção..."

"Chamemos-lhe visita exploratória", corrigiu o director do hospital, fazendo-lhes um sinal de que seguissem pelo corredor. "Vamos? E melhor começarmos a visita."

O périplo pelo hospital culminou num almoço no Zambe, o mais requintado botequim de Tete.

O ambiente era agradável, devido sobretudo à acção dos aparelhos de ar condicionado. O

restaurante estava mais cheio do que era habitual àquela hora e bastou observar os clientes com atenção para perceber porquê. Aos rostos familiares, como o do inspector Aniceto Silva, que almoçava junto à janela com o seu homem de mão, Francisco

Latino, acrescentavam-se muitas caras novas, em especial de homens aloirados de olhos claros e pele avermelhada como camarões, decerto sul-africanos e rodesianos.

"Bifes é mato", constatou José quando se instalaram nos lugares indicados pelo empregado.

"Não param de chegar."

O doutor Martins varreu as outras mesas com o olhar.

"A barragem trouxe animação, hem?"

Consultaram a ementa e encomendaram os pratos. Quando o empregado se afastou estabeleceu-se um silêncio desconfortável entre os três e José aproveitou estar num canto, na penumbra, para passear os olhos por Nicole. Era uma mulher atraente, como as que se viam nos filmes americanos, e tão vistosa que atraíra todos os olhares, incluindo dos homens estrangeiros, desde o momento em que os três haviam entrado no Zambe até àquele instante em que se encontravam ali sentados.

"Então?", protestou a rodesiana. "Ninguém bota faladura?"

"Peço desculpa", disse José. "Estava a pensar que conheço poucos bif... ingleses... enfim, sul-africanos ou rodesianos. Aliás, você é mesmo a primeira."

"Ai sim? Não me diga! Para compensar eu estou meio habituada a conviver com portugueses.

Quando era mais nova vinha sempre com os meus pais passar férias à Beira. Ainda peguei dois namorados portugueses. Oh, eram tão legais!... Um pouco machistas, é verdade, mas eu não lhes podia resistir." Suspirou. "Acho que foi por isso que tirei a pós-graduação no Brasil e aprendi português."