Portanto, é só fazer as contas." Baixou a voz, num tom de conspiração. "Temos informações seguras de que eles já se estão a movimentar na Zâmbia para meter homens aqui no distrito. Ou muito me engano ou, com Cabora Bassa em marcha, as coisas vão aquecer à séria por aqui. Eu não me chame Aniceto se isso não acontecer."
"Tenho a certeza de que os seus chefes estão sabendo isso..."
"Saber, sabem", assentiu o inspector. "Mas acho que se andam a fiar na Virgem, se é que me faço entender. Os tipos pensam que os turras vão meter aqui apenas uns grupinhos de guerrilha e que a coisa se resolve com a colocação de batalhões no Furancungo e no Bene, para travar as infiltrações da Zâmbia." Voltou a bater com o dedo no nariz. "Cheira-me, no entanto, que o inimigo vai enfiar neste distrito uma data de gente. Se travar a barragem é agora a sua prioridade e se forem verdadeiras as informações de que há grande movimento de homens pela Zâmbia, é melhor prepararmo-nos para o bailarico!"
A médica rodesiana pareceu ficar atordoada com estas afirmações, decerto porque elas lhe abriam a inesperada perspectiva de ir para Moçambique meter-se num vespeiro de guerra. José apercebeu-se da perturbação que aquelas informações lhe provocaram e, acenando em despedida aos dois homens da PIDE, indicou a porta a Nicole.
"Já se faz tarde", disse. "E melhor irmos andando. Até logo!"
Aniceto Silva travou-o com o braço.
"Espere aí, doutor!", exclamou. "Ainda não me comentou a grande novidade!..."
"Qual novidade?"
"Então!... A do... do director."
"Qual director? Está a falar de quê?"
Surpreendido com tanta ignorância, o inspector virou a atenção para o doutor Martins.
"Não lhe contou?"
José voltou-se igualmente para o seu superior hierárquico, percebendo que havia ali alguma coisa que lhe escapava.
"Contou o quê? Que se passa?"
Martins forçou um sorriso e passou os dedos pela barba.
"Vou voltar a Lourenço Marques", anunciou. "A minha transferência já foi autorizada."
"E quem o irá substituir?"
"O novo cirurgião será o Feitor, um colega que deverá chegar a Tete daqui a duas semanas."
Aniceto Silva franziu o sobrolho com uma expressão levemente reprovadora.
"Ó doutor", disse, interpelando de novo Martins. "Ainda não contou tudo. Ora desembuche lá o resto."
"O resto é consigo", devolveu o cirurgião. "No fim de contas, foi o senhor que deu a aprovação final, não foi?"
"Aprovação de quê?", quis saber José. "Do que estão vocês para aí a falar?"
O rosto do inspector da PIDE abriu-se num grande sorriso. Aniceto Silva estendeu a mão na direcção de José.
"Aperte aí o bacalhau, homem!", exclamou num tom efusivo. "Você vai ser nomeado director do hospital de Tete. Parabéns!"O pai ganhou o braço-de-ferro e o professor Pulga acrescentou Diogo a Angelino na sua lista de contratações. A vida dos dois rapazes do Rego da Agua tomou então um rumo inesperado.
Todos os dias, depois das aulas no Liceu de Gaia, os dois amigos metiam-se no autocarro ou apanhavam uma boleia, coisa muito comum nesses tempos na cidade do Porto, e lá iam até às Antas para o treino do fim da tarde. Regressavam a casa já de noite e Diogo juntava-se aos irmãos para as lições de Matemática e Física que o pai ministrava depois do jantar, ou de Química e Biologia na dona Detinha, a vizinha que era professora no liceu e que dava uma ajuda na educação dos cinco filhos do casal Meireles. O circuito infernal completava-se aos fins-de- semana com os jogos.
O esforço diário de Diogo adquiria facetas sobre-humanas, mas o facto é que a sua carreira no FC
Porto estava em fase ascendente. Ao segundo ano foi promovido aos seniores e em breve passou a fazer parte do seis-base do escalão superior, usando sempre nas costas o número 6. Formava com Angelino uma dupla formidável, o amigo no passe, Diogo no remate, umduo de ouro que valeu vitórias sucessivas à equipa e prometia aos dois craques um futuro triunfal.
A vida fintou, contudo, aquela parelha. Numa tarde em que aguardavam o autocarro a caminho das Antas, Diogo reparou que o amigo estava menos loquaz do que o habitual e questionou-o sobre o que se passava.
"O meu pai conseguiu lugar na Companhia dos Caminhos- de-Ferro da Beira", anunciou Angelino sem se atrever a encará- lo. "Partimos daqui a duas semanas."
O anúncio foi tão repentino que Diogo duvidou que tivesse ouvido o que lhe parecera ter ouvido.
"O quê?!"
Angelino, que mantinha o olhar baço perdido no fundo da rua, voltou então o rosto para o amigo e encarou-o por fim.
"Vou-me embora para Moçambique."
O universo do jovem craque do FC Porto alterou-se então radicalmente. A partida de Angelino constituiu uma profunda decepção e deixou-o órfão de amigos. Para compensar a perda, voltou-se ainda mais para os treinos e concentrou-se na actividade desportiva. As vitórias não pararam de aparecer e a sua carreira de voleibolista tornou-se meteórica.
Além de adversários como o Benfica e o CDUL, a equipa cruzou fronteiras para enfrentar formações como o Real Madrid, o Partizan de Belgrado, o Montpellier e o Galatasaray. A adolescência e as exigências do voleibol de alta competição moldaram o desenvolvimento do seu corpo, tornando-o alto e ainda mais elástico, mas também lhe trabalharam a mente, fazendo dele uma pessoa metódica e competitiva. O FC Porto sagrou-se campeão nacional em anos consecutivos muito à custa dos espantosos saltos e fortes remates de Diogo sobre a rede.
Em breve o novo craque do clube vestia a camisola da selecção nacional. A estreia ocorreu em Lisboa a abrir o Torneio da FISEC, a Federação Internacional dos Desportos Escolares Católicos, e o primeiro adversário foi o Líbano.
Essa primeira internacionalização mereceu celebrações com espumante até no Orfeão da Madalena e os ecos da façanha chegaram à distante Beira, cidade de onde Angelino enviou um postal com felicitações e um gracejo.
"Então agora o Líbano é um país católico?" XVII
O som do jipe a contornar o largo diante do hospital irrompeu pela janela do gabinete de José Branco. O médico auscultava nesse instante um idoso que viera do Moatize, mas ao aperceber- se da chegada da viatura largou o que estava a fazer e correu até à porta do edifício. O jipe verde tinha os pneus e a parte de baixo enlameadas e uma espessa camada de pó alaranjado a cobrir-lhe o
tablier.
O novo director desceu as escadas do hospital e avistou o vulto azul-claro da irmã Lúcia apear-se do grande Austin transformado em veículo-ambulância.
"Então? O nosso homem?"
O rosto da freira estava macilento e sulcado de olheiras. Toda ela tinha um aspecto fatigado.
"Muerto", anunciou a irmã Lúcia num tom desalentado. "Fizemos dez horas para lá e dez horas para cá. Para nada." Indicou displicentemente o jipe atrás dela. "Ainda estava vivo quando llegamos ao Fingoé, pero não resistiu à viaje aqui para Tete. A carretera estava muy mal e ele faleceu na zona do Songo."
O médico estacou e assentou as mãos na ilharga. Ficou a observar os enfermeiros que retiravam o corpo do interior do veículo.
"Porra."
A palavra pareceu ter despertado a irmã Lúcia do seu torpor. A freira pôs as mãos à cintura e lançou ao médico um olhar zangado.
"Dicer 'porra' não resolve nada, doutor!", exclamou com revolta mal contida. "Precisamos de espalhar hospitais por todo el distrito. No podemos continuar assim. Tenemos que hacer qualquer coisa!"