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Levam mantimentos, entregam o correio e transportam todo o material de logística de que o pessoal precisa lá no mato."

Estavam os dois plantados diante da parede do hangar e, quase sem querer, José pôs-se a comparar aquele mapa com o que tinha pregado à parede do seu gabinete no hospital havia já quatro anos. Este era talvez mais pormenorizado.

"Isso é uma valente ideia", disse devagar, os olhos a passearem pelos pioneses espetados nos pontos do mapa onde a Missão de Fomento tinha instalado as suas brigadas. "Sabe uma coisa? Era exactamente disso que... que... que..."

Calou-se, os olhos arregalados a devorarem o mapa. Voltou a cabeça e olhou para o pequeno avião estacionado atrás dele e depois para o mapa outra vez e de novo para o aparelho.

"O que foi?", inquietou-se o engenheiro Pontes. "Que se passa? Aconteceu alguma coisa?"

A mente de José funcionava a grande velocidade, tentando digerir as implicações da ideia que lhe germinara na mente como o clarão de um relâmpago. Não era uma ideia, era uma grande ideia!

Grande, grande! E se?... e se?...

Encarou o director da Missão de Fomento e cravou nele com intensidade o olhar cintilante.

"Você usa estes aviões todos... todos os dias?"

A pergunta foi feita com uma dose inesperada de ansiedade, o que suscitou estranheza ao engenheiro Pontes.

"Todos os dias? Porra, claro que não! Temos muito pessoal espalhado por aí, mas a frota é grande e permite-nos fazer rotação dos aparelhos. Umas vezes voam uns, outras vezes voam outros. É consoante as necessidades de serviço."

"Acha que... que me poderia emprestar um destes aviões de vez em quando?"

"Emprestar-lhe um avião? A si? Para quê?"

"Não é a mim", corrigiu José. "Ao hospital, homem. Será que é possível emprestar um avião ao hospital?"

"Bem... quando é que vocês precisam dele?"

"Sei lá, de vez em quando. Quando puderem. Acha que é possível?"

O director da Missão de Fomento olhou para o aparelho estacionado dentro do hangar e voltou-se para o médico diante dele, ponderando a questão. José observava-o com ansiedade indisfarçável.

O engenheiro pesou as suas necessidades e os problemas que o pedido levantava, mas acabou por encolher os ombros e abrir os braços, num gesto de entrega.

"Iá", disse. "Não tem problema."

Ao ouvir estas palavras, José Branco não se conseguiu conter e deu um pulo no ar, um pulo tão grande quanto aquele que dera dois anos antes ao ouvir pela rádio o locutor a relatar o quarto golo consecutivo que Eusébio marcou à Coreia do Norte em pleno Mundial de Inglaterra. Pousou estrondosamente no chão e, com um largo sorriso, abraçou, comovido e efusivo, o seu estupefacto interlocutor.

"Ó engenheiro!", exclamou, "se você não fosse tão feio, dava- -lhe um chocho!"O piloto ajeitou os

Ray-Ban no rosto, mirou-se ao espelho e deu um toque na farda, alisando a pequena faixa com o seu nome, Teixeira, bordado a ouro. Satisfeito com o aprumo, desatou a ligar botões no painel de bordo, desencadeando uma sucessão de cliques e claques secos. Todos aqueles movimentos pareceram inconsequentes até que carregou num botão vermelho e o motor soluçou e se pôs a ronronar e a hélice começou a girar, primeiro devagar, depois mais depressa, num zumbido em crescendo.

"Torre, aqui fala Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo", disse para um intercomunicador, evidentemente o rádio. "Solicito autorização para taxiar."

O rádio estralejou e uma voz metálica respondeu.

"Sim senhor, está autorizado a rolar. Dirija-se à pista 130 e informe-me quando estiver pronto para descolar."

Teixeira verificou indicações e mostradores, destravou uma alavanca e, acto contínuo, o aparelho deu um pequeno salto para a frente, zunindo enquanto rodava pela pista em solavancos suaves.

Um olhar para a manga de vento confirmou-lhe quea brisa soprava de facto de norte, pelo que se posicionou no sentido de 130 graus, conforme instruído pela torre. Testou os motores a fundo e verificou o painel; parecia tudo normal.

O piloto olhou para o lado e no seu rosto ossudo e seco apareceu o esboço de um sorriso.

Mostrava assim ao passageiro que estava tudo sob controlo e não tinha razão para se sentir preocupado.

"Vamos a isto?"

Encolhido no assento, José Branco observava o que se passava com extrema atenção e curiosidade. O Piper Tripacer da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze era um aparelho minúsculo, com uma hélice no nariz e apenas dois lugares, o que transformava o passageiro numa espécie de co-piloto. Qualquer pessoa que se sentasse ali teria obrigatoriamente de se preocupar em saber se o piloto era saudável. O que faria se ele adoecesse de repente e perdesse os sentidos? Mas José, sendo médico, não se mostrava particularmente inquieto. Sabia muito bem como proceder em tal situação: não podendo pilotar o aparelho, teria de reanimar o piloto. Como era a primeira vez que tinha oportunidade de se instalar no cockpit de um avião, estava mais interessado em observar os procedimentos de descolagem do que apoquentado com a saúde de Teixeira.

"Força", respondeu José. "Vamos embora."

O piloto efectuou uma verificação final e imprimiu potência ao motor. O zumbido tornou-se intenso e deu até a sensação de que a hélice ia rebentar de tanto esforço. Satisfeito com a resposta do aparelho, Teixeira voltou a colar o intercomunicador à boca.

"Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo pede autorização para descolar."

"Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo está autorizado a descolar", foi a resposta imediata. "Boa viagem!"

O avião acelerou pela pista, rolou com velocidade e, em apenas alguns metros, Teixeira puxou a manche e o aparelho ganhou altitude com uma leveza surpreendente, estremecendo sob a crepitação do motor e sacudindo ao sabor caprichoso do vento, o nariz sempre apontado para o imenso e profundo céu límpido.

José espreitou pela janela e viu o rio curvar pela cidade e o batelão a cruzar o Zambeze no seu vaivém interminável e os pilares da ponte que era entretanto construída como um esqueleto de ferro a erguer-se a meio das águas e o casario a tornar-se mais pequeno e os embondeiros a perder de vista na terra alaranjada e o Matundo ali à direita e o horizonte recortado em montes e farrapos de nuvens a navegar no azul infinito... O vento ali em cima soprava forte e sacudia o pequeno Piper Tripacer de um lado para o outro, mas depressa o aparelho estabilizou em altitude, o motor deixou de zumbir em aflição e passou a zungar num tom monocórdico, tão monótono que se tornou até sonolento, e assentou enfim a direcção para norte.

O lugar do passageiro, na verdade um assento de co-piloto, era apertado, mas José sentiu-se surpreendido por estar a tirar prazer da viagem. Os imponentes Super Constellation ou até os grandes Dakota impressionavam-no, de tal modo que nunca se livrava do medo quando voava neles. O Piper Tripacer era uma formiga ao pé daqueles monstros e qualquer rabanada de vento o fazia bailar nas alturas, mas o que era estranho é que não sentia medo nenhum por voar naquela frágil caixa de fósforos.

Tratava-se de um sentimento difícil de explicar. Nos outros aviões tinha uma impressão permanente de que viajava em caixões voadores e a morte poderia ocorrer a qualquer momento, mas naquela autêntica folha atirada ao vento a sensação era que lhe haviam nascido asas e se tornara totalmente livre. Se o contasse a Mimicas, ela decerto não acreditaria. A verdade, porém, é que deixar-se levar naquela engenhoca delicada não lhe parecia façanha, mas puro entretenimento.