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Aterraram numa pista de terra batida no Furancungo, uma povoação situada próximo da fronteira com o Malawi. Dois homens da Missão de Fomento esperavam-nos à porta do avião e, antes mesmo de ajudarem a descarregar os mantimentos e o material, agarraram-se ao correio e verificaram se havia alguma coisa para eles. Ambos tiveram sorte. Um recebeu uma carta da mulher e o outro desembrulhou um exemplar de A Bola que lhe vinha destinado.

"É para ver as notícias do meu Sporting", disse com uma gargalhada. "Aos lampiões nem os deixo cheirar o jornal, que é para aprenderem a não chatear!"

"Veja lá o que diz", atalhou José. "Olhe que sou do Benfica..."

O homem encolheu os ombros.

"Ninguém é perfeito!"

Os primeiros "clientes" do médico foram os funcionários da brigada do Furancungo da Missão de Fomento. Fez consulta a todos, mas os problemas que encontrou revelaram-se negligenciáveis.

A maior parte queixava-se de picadas de insectos, pelo que lhes distribuiu umas pomadas para resolver o assunto, e apenas um tinha algo de mais sério, embora nada de especiaclass="underline" uma gastroenterite que resolveu com as soluções adequadas para o caso.

"E agora", anunciou o médico, "a população."

"Qual população?", estranhou o chefe da brigada.

"Eu não sou o médico privativo da Missão", esclareceu José. "Vim aqui prestar assistência sanitária a todas as pessoas que dela necessitam. Onde as posso encontrar?"

Os homens da Missão de Fomento entreolharam-se, surpreendidos. O chefe da brigada esboçou um gesto de resignação, como se achasse o pedido bizarro mas não o quisesse discutir.

"Não sei se o senhor doutor vai encontrar o que quer", disse. "Mas se quer mesmo ir, eu levo-o lá."

O chefe da brigada guiou-o até ao aglomerado de palhotas do Furancungo. A manhã era agradável, como habitualmente naquela região, e os aldeãos sentavam-se à conversa diante das casas de adobe enquanto as mulheres transportavam água ou pilavam com os bebés atados por panos às costas. Havia uma panela de água sobre as pedras carbonizadas de uma fogueira que ardia brandamente no centro de uma clareira e os recém-chegados dirigiram-se ao local, atraindo a atenção dos moradores. Como sempre, José vestia as suas tradicionais camisa, calças e sapatos imaculadamente brancos, destacando-se assim do resto do grupo.

"Atenção a todos!", anunciou o chefe da brigada em voz alta. "Temos connosco um médico para ver as pessoas doentes. Quem tiver uma ferida ou uma dor ou alguma coisa de errado no corpo pode vir ter com ele. O médico é amigo e põe as pessoas boas."

Para garantir que a mensagem era correctamente entendida por todos, o chefe da brigada chamou o seu tradutor e o homem explicou as coisas em nhungué. Os aldeãos ouviram tudo com grande atenção e observaram José com curiosidade, mas quando as explicações terminaram e o médico ficou a aguardar os primeiros pacientes ninguém se mexeu.

O silêncio tornou-se embaraçoso e alguns aldeãos recomeçaram a conversar entre eles, como se tudo aquilo que haviam escutado não tivesse passado de uma interrupção das coisas realmente importantes. Preocupado com salvar a face do seu ilustre visitante, o chefe da brigada repetiu a mensagem e o tradutor também. De novo sem efeito.

"Peço desculpa, senhor doutor", disse o chefe da brigada, "mas, como vê, eles..."

José ergueu a mão.

"Não faz mal." Fez um gesto. "Venham comigo, por favor."

O médico começou a passear pelas palhotas, com o chefe da brigada, o tradutor e Teixeira no encalço. Descobriu uma criança com a perna inchada e ajoelhou-se diante dela para a observar, mas a mãe viu a cena e foi de imediato buscá-la.

"Diga-lhe que não faço mal", indicou ao tradutor. "Esta perna tem de ser vista porque senão ele pode ficar com problemas."

O homem traduziu para nhungué, mas a mãe da criança abanou a cabeça e deu uma resposta curta antes de desaparecer entre as cubatas com o menino.

"Ela diz que o filho não tem nenhum problema e que já vai ficar bom."

O médico suspirou e retomou o passeio pela aldeia. Encontrou mais dois casos que lhe pareceram requerer atenção, mas as pessoas voltaram a esquivar-se e sumiram-se rapidamente no emaranhado de palhotas. Percebeu que os aldeãos tinham medo por verem um estranho a deambular por ali com promessas de curar toda a gente, pelo que decidiu mudar de táctica.

Retomou o passeio pela aldeia, espreitando aqui e ali o interior das palhotas, até que numa delas se deparou com uma mulher estendida sobre uma esteira. O dono da cubata estranhou ver ali um grupo de brancos, e em particular um branco vestido de branco, e aproximou-se, zeloso da protecção da sua família e dos seus bens.

"O que tem ela?", quis saber José.

"Xi, patrão, está a morrer", respondeu o aldeão em português. "E melhor não incomodar."

O médico inclinou-se sobre a mulher e, apontando-lhe uma lanterna, analisou-a melhor. Tinha o corpo coberto de chagas e feridas diversas. O foco de luz desceu-lhe até às mãos e reparou que lhe faltavam alguns dedos. José recuou instintivamente.

"Lepra!"

O resto do grupo de visitantes, que se aglomerara à porta da palhota para ver a paciente, afastou-se de imediato. O médico, todavia, permaneceu no local e retomou a observação.

"Ó doutor!", chamou Teixeira. "Saia daí!"

"Não há problema", retorquiu o médico. "Ajudem-me a levá- la daqui para fora!..."

Os homens entreolharam-se, espantados com o pedido, e ficaram momentaneamente sem saber o que dizer. O primeiro a reagir acabou por ser o dono da cubata.

"Deixa a minha mãe", disse ele, quase implorando. "Deixa ela morrer em paz."

"Que disparate, não deixo nada!", devolveu José no tom de que essa questão nem se punha.

"Andem daí, pessoal. Vamos lá, ajudem-me a tirá-la daqui."

O grupo não sabia bem o que fazer e acabou por ser o chefe da brigada quem expressou o receio que se apossara de todos.

"Mas, doutor, ela tem lepra...", argumentou ele. "Isso é maningue contagioso, não é?"

Ao aperceber-se da resistência, o médico saiu da palhota e acocorou-se à entrada, abrindo no chão a malinha que o acompanhava sempre. Retirou do interior o que pareciam dois panos brancos e estendeu-os na direcção dos homens.

"Se estão com medo, ponham estas máscaras", ordenou. "Mas não se preocupem com nada. A lepra é provocada por um microrganismo que só se transmite pela saliva, e mesmo assim dificilmente. Isto significa que a doença apenas é contagiosa quando se vive muito tempo ao pé do paciente em condições de grande promiscuidade, estão a entender?"

Os três homens fizeram que sim com a cabeça, mas ninguém se mexeu.

"Não é o caso de nenhum de vocês, pois não? Alguém aqui partilhou a intimidade com a senhora? Alguém andou a beijá-la?" Apontou para a cubata com um gesto veemente. "Então levem-me imediatamente esta mulher para o posto, seus maricas! Ela tem de ser tratada."

"Mas a lepra tem cura, doutor?"

"Claro que tem. O bacilo da lepra mata-se. Nunca ouviu falar na palavra antibióticos?"

Ultrapassando as derradeiras hesitações, o chefe da brigada mandou buscar uma maca e dois empregados transportaram a leprosa pelo emaranhado de ruelas poeirentas da aldeia em direcção ao posto onde funcionava a Missão de Fomento no Furancungo.