O sol batia forte e Teixeira, que continuava a proteger os olhos com os Ray-Ban, aproveitou um momento em que viu o médico afastar-se um pouco mais para se aproximar discretamente dele.
"Ó doutor", murmurou o piloto, preocupado em assegurar- se de que ninguém mais os ouvia.
"O que vamos fazer com esta mulher?"
"Temos de a levar para Tete."
"Mas como?"
"Ora, no avião."
Desde o início que Teixeira suspeitava que era esse o plano, pelo que não mostrou a mínima surpresa. Tirou os óculos, lançou um bafo de humidade nas lentes escuras e pôs-se a limpá-las à camisa.
"E quem fica em terra?"
José franziu o sobrolho.
"O que quer dizer com isso?"
Aproximavam-se já do posto e via-se o aeródromo lá ao fundo, com o avião estacionado junto ao poste com a manga do vento.
"O Piper Tripacer só tem dois lugares, doutor", lembrou o piloto, reassentando os óculos no rosto. "Se ela vai lá dentro, quem fica cá? Eu ou o doutor?"
O médico estacou, desconcertado. Olhou para o avião lá ao fundo e depois para a maca transportada pelos homens, até se voltar enfim para Teixeira, que aguardava uma resposta.
"Vou ficar aqui a fazer um levantamento da situação sanitária", decidiu. "Leve-a imediatamente para Tete e venha buscar- -me amanhã de manhã."
As viagens subsequentes mostraram que a resistência da população do Furancungo não era uma excepção. Ao longo das semanas seguintes, José aproveitou a ocasional disponibilidade dos aviões da Missão de Fomento ou do Aero-Clube de Tete para voar até Chicoa, Vila Coutinho e Chinde, onde também se confrontou com a desconfiança generalizada. As pessoas afastavam-se à aproximação do médico e tornou-se difícil ver mais do que um punhado de pacientes em cada viagem.
"São os feiticeiros", opinou Teixeira, os olhos sempre escondidos pelos Ray-Ban. "Metem-lhes medo e dizem que o doutor traz do céu maus espíritos."
A leprosa, que havia sido internada no hospital de Tete, dava entretanto sinais de grande melhoria. As manchas cutâneas desapareceram e a mulher, que até aí vivia num estado de constante debilidade, ganhou energia aos poucos e ao fim de algum tempo começou até a mostrar-se irrequieta; passeava pelo hospital a qualquer hora e pôs-se a perguntar com crescente insistência quando a iam mandar para a sua terra.
Numa manhã de inspecção das enfermarias, José Branco deu com ela a tentar trepar por uma maçaniqueira. Não lhe pareceu comportamento de uma pessoa gravemente doente e mandou que lhe fizessem uma baciloscopia. Quando os resultados vieram do laboratório tirou as últimas dúvidas.
"O leprae foi eliminado", constatou ao consultar o relatório das análises. "Vamos mandá-la para casa."
As reticências das populações locais a serem vistas por um médico branco haviam entretanto produzido o seu efeito junto do director do hospital. José tinha encarado os aviões da Missão de Fomento ou do Aero-Clube de Tete como a resposta perfeita para a cobertura sanitária do distrito, mas começava a ter as suas dúvidas. De que valia o esforço de voar até aos quatro cantos de um território tão vasto se ninguém se deixava tratar? Não seria melhor ficar em Tete? Se calhar devia restringir o uso dos meios aéreos ao transporte de casos urgentes, afinal a preocupação que originalmente o conduzira àquela solução.
Decidiu fazer uma nova tentativa e, por causa da leprosa, escolheu de novo o Furancungo. Se a viagem não servisse para mais nada, pelo menos serviria para se certificar do estado da mulher.
Duas semanas depois de lhe ter dado alta e de a ter devolvido à sua terra, voltou a voar com Teixeira até à povoação do planalto junto à fronteira nordeste.
A aterragem decorreu como de costume, com o Piper Tripacer a tocar na pista de terra batida do aeródromo e a dirigir-se aos solavancos para o local habitual de estacionamento. Teixeira desligou o motor e tudo foi ficando tranquilo, com o rumor estrepitante do aparelho a calar-se e o zumbido da hélice a abrandar até se impor o silêncio retemperador. Os dois ocupantes tiraram os cintos e, enquanto o piloto procedia às verificações finais de segurança, o médico abriu a porta e saltou para fora. Sentiu uma dor na região lombar, fruto da posição prolongada no assento, mas depressa o incómodo desapareceu e ele dirigiu-se ao jipe que entretanto os viera buscar.
"Bom dia!", saudou. "Está tudo bem?"
"Maningue naice", retorquiu o chefe da brigada. "Hoje isto anda animado!..."
José pôs o pé no jipe e alçou o corpo para o interior do veículo. Nessa altura reparou num burburinho junto ao portão do aeródromo e desviou o olhar para aquela zona. Uma pequena multidão de aldeãos acotovelava-se no local; era de certeza mais de uma centena de pessoas.
"Que se passa?", perguntou o médico. "Vêm aí os Beatles?"
O chefe da brigada tirou um maço de LM do bolso e acendeu um cigarro.
"O senhor doutor está tramado."
"Eu? Porquê?"
"Lembra-se da leprosa?"
O coração de José disparou. Encarou o interlocutor com uma expressão de alarme.
"O quê? Aconteceu-lhe alguma coisa?"
"Aconteceu pois."
"O quê? O quê?"
"Ficou boa, o diabo da mulher. Até já anda a machambar com a família. Havia de a ver, é um espectáculo!"
O médico ficou momentaneamente desconcertado.
"Então o que se passa?"
O homem aspirou o cigarro e deixou o bafo de fumo sair-lhe lentamente pelas narinas. Depois apontou na direcção da multidão que se acumulara junto ao portão do aeródromo e respirou fundo, quase contrariado.
"O que se passa é que agora toda a gente quer ser vista por si."O sucesso não foi instantâneo, mas seguiu um padrão que se repetiu por todos os lugares que José Branco visitou ao longo dessas primeiras semanas. A chegada do médico que vinha do céu suscitou inicialmente grande desconfiança, mas o tratamento bem sucedido de pacientes considerados pelos aldeãos casos perdidos foi desencadeando a afluência de doentes em massa a cada aeródromo onde o Piper Tripacer aterrava.
"O doutor já é um Beatle", gracejou Teixeira ao aterrar numa pista prestes a ser invadida por uma nova multidão. "Qualquer dia as miúdas começam aos berros e a arrancar cabelos e a mostrar as mamas só de o ver descer do avião..."
O médico revirou os olhos, mostrando um desagrado que não era sincero.
"Engraçadinho!..."
As multidões engrossavam a cada nova visita e mesmo em aldeias que antes pareciam desertas começaram a comparecer grandes massas de gente, como se as pessoas brotassem da própria terra.
Depressa se passaram a contabilizar mais de mil pacientes em determinados locais e foi nessa altura que o médicopercebeu que estava a ser vítima do seu êxito. Teria de fazer alguma coisa.
Pediu uma reunião com o director da Missão de Fomento e expôs-lhe a situação.
"É demasiada gente", concluiu José no final da exposição. "Não sou capaz de dar vazão a tanto doente."
O engenheiro Pontes esboçou um esgar de impotência. 9
"O doutor, eu percebo isso", disse, "mas o que quer o senhor que eu faça?"
O director do hospital tamborilou os dedos na madeira da secretária, sabendo que o pedido que ali o trazia seria de difícil digestão para o estômago do seu interlocutor.
"Preciso que me empreste o avião mais vezes."
"Mais ainda?", admirou-se o responsável da Missão de Fomento, o tom de voz a roçar o escandalizado. "O senhor doutor já se abotoou com a maquineta uma ou duas vezes por mês!"