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"Não chega", afirmou. "Não posso visitar o Furancungo, por exemplo, quando o rei faz anos.

Tenho de ir lá todas as semanas. E quem diz Furancungo diz Chicoa ou qualquer das muitas terriolas onde ainda nem sequer pus os pés."

"E os gajos do Aero-Clube? Eles não o ajudam?"

"Claro que sim. Com os aviões deles e com os vossos consigo voar todas as semanas. Mas o serviço é muito procurado e preciso de maior disponibilidade da vossa parte."

Pontes abanou a cabeça.

"O doutor, por mais boa vontade que eu tenha, e tenho, há uma coisa que o senhor tem de perceber", disse num registo a roçar o pedagógico. "Ao ceder-lhe o aparelho uma ou duas vezes por mês já estou a correr alguns riscos. Mas se eu lhe der mais... meu Deus, como explico isso?

Além disso preciso do avião, não é? Por muito nobre que seja o seu trabalho, a Missão de Fomento também tem as suas obrigações e não pode deixar de as cumprir só para o ajudar." Abanou a cabeça com ênfase. "Não, isso não é possível."

"Não é para me ajudar a mim pessoalmente", contrapôs o médico. "É para ajudar as populações."

O engenheiro respirou fundo, a decisão já tomada.

"É muito louvável o que o senhor está a fazer. Mas, em consciência, não tenho modo de lhe emprestar o avião mais vezes do que já empresto, sob pena de prejudicar o nosso trabalho. Isso não posso permitir."

O médico preparou-se para esgrimir com aquela rejeição, mas conteve-se. Que poderia dizer que não tivesse já dito? Que argumentos haviam ficado por expor? Como conseguiria inverter aquela decisão? Estudou o rosto do seu interlocutor e percebeu nesse instante que já tinha ido tão longe quanto possível. Não era de facto razoável exigir mais do que já lhe era oferecido.

Empurrou a cadeira para trás e ergueu-se com lenta resignação.

"Tem razão", reconheceu, estendendo a mão ao interlocutor. "Agradeço-lhe de qualquer modo a ajuda."

O director da Missão de Fomento apertou-lhe a mão e acompanhou-o até à porta do gabinete.

"E agora, doutor? O que planeia fazer?"

O médico lançou-lhe um derradeiro olhar antes de meter pelo corredor para sair do edifício.

"Vou falar com o governador."

O governador de Tete era um homem baixo e de uma magreza quase cadavérica, conhecido pela parcimônia enquanto orador; tratava-se de pessoa que preferia ouvir a falar. Logo que teve conhecimento de que o director do hospital da cidade telefonara a solicitar uma audiência, acedeu a marcar uma reunião para essa tarde.

A hora combinada recebeu José e ouviu-o sentado no seu sofá predilecto, mesmo diante do aparelho de ar condicionado, de modo a apanhar em cheio o sopro frio que lhe refrescava o gabinete. O médico não alimentava grandes esperanças de obter o apoio das autoridades; sabia que havia outras prioridades e as preocupações sanitárias não se situavam no topo da lista, mas isso não o impediu de tentar. Pôs-se por isso a narrar as suas aventuras com Teixeira no Piper Tripacer pelas aldeias do distrito.

Como era seu timbre, o governador de Tete ouviu a exposição num silêncio impenetrável e só quando o seu convidado por fim se calou é que pronunciou as primeiras palavras.

"Já me tinham falado no grande sucesso em que se transformaram as suas visitas de João Semana", disse devagar, como se ponderasse cada palavra. "Isso é mesmo assim?"

"O senhor governador havia de ver", confirmou o médico com evidente orgulho, procurando por todos os meios contagiar o seu poderoso interlocutor com o entusiasmo que o fazia vibrar.

"Chegam a ser mais de mil pessoas. São tantas que às vezes nem sei para onde me virar..."

Um leve sorriso aprovador aflorou ao rosto do governador.

"Mil pessoas, diz o doutor?", perguntou, manifestamente impressionado. "Caramba, isso é mesmo maningue gente!"

"Pois é. É por isso que preciso da sua ajuda, senhor governador. Só com um voo por semana para todo o distrito não tenho maneira de dar resposta a todas estas necessidades."

"Acredito", assentiu o anfitrião, pensativo. Fez uma breve pausa e assentou as mãos nos joelhos, num gesto determinado, como se tivesse acabado de formar opinião sobre o assunto. "Sabe, o seu projecto interessa-me."

"Sim?!", exclamou José, sentindo a esperança espreitar, mas lutando contra o excesso de expectativas. "Está a falar a sério?"

O governador ergueu-se pesadamente do sofá e caminhou até um grande painel com um mapa muito detalhado do distrito de Tete; era a carta que usava para discutir com os chefes militares a situação no terreno.

"Nestas coisas nunca brinco", retorquiu. "Sabe, doutor, temos alguns sinais de que a guerra se poderá alargar aqui no nosso distrito. Os turras já se andam a infiltrar a partir da Zâmbia e espalharam uns quatrocentos homens por diversas bases neste triângulo aqui." Desenhou com a mão um triângulo imaginário entre três pontos a norte do Zambeze, que nomeou. "Chofombo, Cabora Bassa, Furancungo." Voltou-se para o seu convidado. "Os ataques ainda são pontuais, uma vez que estamos naquela fase de aliciamento das populações em que os gajos andam para aí numa grande actividade clandestina, a tentar fazer uma lavagem cerebral às pessoas. Mas eu acho que em breve isto vai mesmo aquecer. E porquê?" Apontou para um ponto no Zambeze. "Por causa de Cabora Bassa, claro. Ainda hoje me pergunto se terá sido boa ideia mandar construir o raio da barragem!" Respirou fundo e fez com as mãos um gesto vago, numa expressão de resignação. "Por isso eu diria que o seu trabalho pode ser de importância crucial. Vejo nele um grande potencial para ajudar a pôr as populações do nosso lado e assim travar a subversão. Como alguns dizem, para ganhar esta guerra temos de lhes conquistar o coração e as mentes."

Estas observações, tão eloquentes em pessoa habitualmente parcimoniosa em palavras, deixaram José inquieto.

"A minha preocupação, senhor governador", apressou-se a esclarecer, "nada tem a ver com a situação política e militar, questão em que entendo que os meus deveres de médico me impõem a neutralidade e na qual não quero nem me devo meter, mas com as dificuldades de assistência sanitária que existem e são estruturais no nosso distrito. As minhas responsabilidades começam e acabam aí."

O governador caminhou para o seu lugar e voltou a instalar- se no sofá.

"Bem sei, bem sei", assentiu ele num tom tranquilizador. "Mas uma coisa não atrapalha a outra, pois não? Que a sua ideia nos convenha é um problema nosso, não seu. Acho até que, se nos convier, melhor para si: mais facilmente obterá o que precisa."

O médico deteve-se a estudar o seu interlocutor, tentando ler- lhe no rosto as intenções."Pois, mas isso, em termos práticos, significa o quê?", quis saber, como se tacteasse às escuras. "Será que o senhor governador podia falar com os responsáveis da Missão de Fomento e convencê-los a emprestarem-me o avião mais vezes? Outra possibilidade seria disponibilizar meios através do Aero-Clube."

O governador sorriu mais uma vez e, inclinando-se para a frente, estendeu-lhe a mão, indicando assim que dava a reunião por concluída.

"Vou fazer mais do que isso", disse em tom de despedida. "Vou remeter o assunto para Lourenço Marques."

O vulto azul-claro com um lenço branco na cabeça assomou à porta do gabinete, espreitando para o interior.

"Doutor Branco?"

O médico ergueu a cabeça e reconheceu o rosto sulcado de rugas da freira.

"Sim, Lúcia?"

"Está aqui o bombre dos Correios", anunciou a enfermeira- chefe. " Tiene um telegrama para o