senor..."
A freira espanhola afastou-se para deixar entrar um rapaz fardado com as insígnias dos CTT. O
carteiro trazia um envelope na mão que estendeu de imediato ao destinatário. O médico pegou no sobrescrito e, em troca, entregou-lhe distraidamente uma moeda de 2$50.
"Toma lá uma quinhenta", disse. "E a bacera para ires tomar uma Coca-Cola."
Nem ouviu o carteiro agradecer. Sabia que raramente os telegramas eram arautos de boas notícias, pelo que, mal contendo a preocupação, rasgou o envelope pela borda e extraiu do interior a folha, que de imediato devorou com os olhos.
"C'os diabos!"
A exclamação e o franzir da sobrancelha provocaram um sobressalto na irmã Lúcia, que ficara a observá-lo para tentar adivinhar pelas feições dele o conteúdo da missiva.
"É grave, doutor?"
A expressão na face de José denunciava uma certa perplexidade, mas abanou a cabeça em resposta à inquietação da sua subordinada.
"Não, grave não é..."
Calou-se para reler o telegrama, o que não contribuiu para tranquilizar a freira.
"Doutor, que pasaV
O médico lançou um olhar na direcção do calendário das baterias Tudor que tinha pregado à parede.
"Caramba, só passou uma semana!", exclamou com pasmo. "Isto foi rápido!"
"O que foi rápido? No entiendo..."
José estendeu-lhe o telegrama.
"É uma convocatória", explicou, abrindo a malinha de mão para arrumar o estetoscópio. "Tenho uma reunião depois de amanhã com o governador-geral."
Lúcia passou um olhar inquisitivo pelo telegrama.
"Una reunion com o governador? Isso significa o quê?"
O médico fechou a malinha com um gesto rápido e pegou nela, dirigindo-se à porta do gabinete para sair.
"Significa que tenho de ir a Lourenço Marques."Quando as portas do Dakota da DETA se abriram e José Branco pisou as escadas e o ar doce de Lourenço Marques lhe acariciou a face, não deixou de se sentir levemente surpreendido por descobrir que existiam sítios onde a temperatura ambiente era amena. Sempre soubera isso, claro, mas após tanto tempo a viver no distrito de Tete tinha de certo modo acabado por interiorizar que o normal era a fornalha inclemente, não a brandura acolhedora.
Uma vez no terminal do Aeroporto Gago Coutinho, levantou a mala que viera nos porões do avião e seguiu na direcção da tabuleta a indicar "saída". A porta abriu-se e viu um ajuntamento diante dele; eram as pessoas que aguardavam a chegada de familiares e amigos que iam desembarcando dos voos sucessivos. Antes do seu tinha aterrado um avião de Porto Amélia e logo a seguir um aparelho da South African Airways proveniente de Joanesburgo, pelo que os passageiros se misturavam na zona de desembarque.
No meio daquela multidão anónima destrinçou um negro que exibia uma folha de papel com o seu nome rabiscado. Aproximou-se dele e identificou-se."Sou o motorista da Secretaria Provincial de Saúde, doutor", disse o homem, pegando-lhe na mala. "O carro está lá fora."
"Você veio-me buscar?", admirou-se José, sentindo-se lisonjeado mas ao mesmo tempo a achar que aquela atenção era talvez um exagero. "Caramba, não era preciso tanto!..."
O homem exibiu a fileira reluzente de dentes.
"E como ia o doutor para o hotel? De machibombo?"
O motorista conduziu-o pelas avenidas amplas de Lourenço Marques até passarem pelo gigantesco complexo do Liceu Salazar, onde formigavam revoadas de estudantes de bata branca, e desembocarem no Hotel Cardoso, um belo edifício de fachada creme situado na borda da colina.
Abaixo estendia-se a mancha azulada do Índico no seu abraço à cidade; de longe as águas pareciam tranquilas, sulcadas apenas por um cargueiro que se abeirava do porto.
O homem ajudou-o no check-in, marcou hora de encontro na manhã seguinte para o ir buscar à porta do hotel e com um aceno desapareceu de regresso à sua vida. "Tá-tá."
A tarde ia a meio e fazia um certo calor. O recém-chegado foi pousar a mala no quarto e, depois de arrumar a roupa nas gavetas, sentou-se à beira da cama e pegou no telefone. Consultou a agenda, procurou o nome de Domingos Rouco e digitou o número que tinha anotado, dois oito nove sete.
Ao terceiro toque atendeu uma voz feminina. Era Albertina.
"Estou sozinha aqui na minha flat", revelou a amiga depois de se cumprimentarem.
"Então o Domingos?"
Fez-se um súbito silêncio no outro lado da linha.
"Ao telefone não", acabou ela por dizer. "Temos de nos encontrar."
Estes cuidados deixaram-no desconcertado. Que mistério seria aquele que não podia ser conversado ao telefone? Teve vontade de insistir, mas presumiu que Albertina tivesse as suas razões e conteve-se.
"Estou no Cardoso. Podes dar um salto até aqui?"
"O Cardoso não pode ser, tem demasiada gente", observou ela. "Além do mais agora também não posso. Que tal às oito da noite no Kanimambo?"
Num gesto quase reflexo, José espreitou o relógio. Faltavam quatro horas.
"Combinado."
Percebeu que dispunha de quatro horas para preencher e hesitou sobre o que fazer. Poderia dar um passeio pela cidade, mas a verdade é que estava muito cansado e o que lhe apetecia era estender-se ao sol. Espreitou pela janela do quarto a piscina do hotel e achou-a incrivelmente convidativa, com a água azul- -turquesa cristalina a relampejar entre o edifício e o relvado. Em Tete não havia piscinas assim; a melhor era a do Aero-Clube e mesmo lá a água não tinha aquela transparência.
Despiu a roupa e pôs o fato-de-banho. Nunca fora grande entusiasta de andar de trajo de banho e uma miradela ao espelho recordou-lhe porquê: tinha um gigantesco chumaço entre as pernas que o tecido elástico do fato-de-banho avolumava ainda mais. Para dizer a verdade, era embaraçoso.
Mas que podia fazer? Deixar de ir à praia ou à piscina? Ir de calças? Havia situações em que não podia evitar o fato-de-banho e, apesar de se sentir complexado, a verdade era que, se quisesse gozar a piscina do hotel, teria de se submeter.
Desceu até à piscina e pediu um whisky, que depositou na mesinha ao lado da espreguiçadeira onde se alongou. À frente dele, o Índico estendia-se tranquilo aos pés da elegante urbe, resplandecente nas suas características águas azul-claras. De copo na mão, pôs-se a apreciar a magnífica vista sobre o mar, o porto e a Baixa da cidade.
Deu uns mergulhos nas águas tépidas da piscina, embora sem nunca sair da zona onde tinha pé, e secou ao sol até a tarde se aproximar do fim. Fazia ainda calor e, sentindo uma deliciosa languidez entorpecer-lhe os movimentos, ficou a contemplar o esplendoroso pôr do Sol que rasgava o céu com vigorosas pinceladas púrpura, entre clarões dourados e roxos; dizia-se que o crepúsculo no Cardoso era o mais bonito de Lourenço Marques e o soberbo espectáculo celeste que se desenrolava diante dos seus olhos parecia confirmá-lo.
"Puxa, vida! Legal encontrar você aqui!"
A voz feminina com o insólito sotaque anglo-brasileiro fê-lo voltar a cabeça. A fitá-lo estava o rosto sorridente de uma loira enorme, o corpo sardento desenhado como as curvas de uma viola e os seios desproporcionadamente grandes tão apertados no biquini azul que davam a sensação de querer a todo o momento pular para fora.
"Ah!", exclamou, reconhecendo-a. "Olá!"
"Lembra de mim?"
"Como poderia esquecer?", disse ele com um sorriso. Tentou recordar-se do nome, mas não conseguiu. "Você é a... a médica rodesiana."