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A loira passou-lhe o olhar pelo corpo e ficou momentaneamente presa ao fato-de-banho dele, como se visse e não acreditasse, mas depressa se recompôs e a face retomou uma expressão luminosa.

"Eu também não esqueci você", murmurou com uma certa malícia. "José, não é? Veio de férias?"

"Trabalho", corrigiu ele. "E você?"

"Fiquei uma semana no Songo e estou indo agora para Salisbúria. Mas como passei por Lourenço Marques pensei para mim mesma: Nicole, cadê o seu espírito de aventura? Porque você não tira uns diazinhos de férias? Esse sítio é legal. E aqui estou eu!"

Chamava-se Nicole, lembrou-se José.

"Isto é realmente agradável", observou ele, exibindo com um gesto o espaço em redor. "Fica cá até quando?"

Nicole esboçou uma careta, como se fizesse beicinho.

"Vou depois de amanhã pegar um voo para a Rodésia", disse, evidentemente contrariada. "Mas quando as coisas arrancarem a sério em Cabora Bassa vou visitar com frequência o Songo. Acha que posso procurar você?"

"Sim, claro. Sempre que quiser."

"Jóia! Assim podemos discutir os... os problemas sanitários, né?"

"Com certeza."

A rodesiana espreitou o relógio.

"Puxa, vida! São quase sete horas!", exclamou. Pousou os olhos azuis no seu interlocutor. "Estou ficando com fome. Você não quer vir jantar comigo?"

A proposta arrancou uma hesitação de José, mas tomou um ar pesaroso.

"Não posso", disse. "Já tenho um compromisso."

Chegou mais cedo ao restaurante Kanimambo e foi instalar- se numa mesa, de onde ficou a vigiar a porta. Achara estranho o tom de mistério de Albertina ao telefone e presumiu que o amigo andava de novo metido em sarilhos com as autoridades. Quando a viu cruzar a porta e lançar-lhe um sorriso indisfarçavel- mente triste, porém, percebeu que dessa vez os problemas eram mais graves do que supunha.

"O Domingos está preso", anunciou-lhe ela logo que se sentou. "Meteram-no na Machava."

O anúncio apanhou-o com a força de um murro desferido de surpresa no estômago.

"Preso?", balbuciou, estupefacto. "Mas... porquê?"

Albertina revirou os olhos e suspirou com resignação.

"Ora, porquê? Pelos motivos do costume, claro. Os tipos da PIDE andavam a vigiá-lo e descobriram que o Domingos integrava o núcleo da Frelimo aqui em Lourenço Marques. Ele, o Craveirinha, o Honwana, o Malangatana e toda a malta. De maneira que os acusaram de subversão e prenderam-nos."

"Meu Deus!", exclamou, sem saber exactamente o que dizer. Era a primeira vez que tinha um amigo atrás das grades e não sabia como proceder numa situação dessas. "Como está ele?"

"Vai-se aguentando, considerando as circunstâncias." Esboçou uma careta. "Aquilo é maningue chato. A Machava está a abarrotar de detidos e há celas individuais onde meteram mais de dez reclusos. Parecem atum em conserva. Como nem sequer

têm cama para dormir, estendem-se numa manta de algodão."

"O Domingos também?"

"Felizmente não", murmurou ela. "Deixaram-no sozinho numa cela com cama, graças a Deus.

Tem um penico e come no chão, mas ao menos está bem melhor do que a maioria."

"Achas que é possível visitá-lo?"

Ela abanou a cabeça.

"Estás maluco? Claro que não!"

"E tu? Como te sentes?"

"Melhor do que ele", observou Albertina com um sorriso fraco. "Além da situação do Domingos, custa-me ver o trabalho destruído. Sabes, ao prender o Domingos e o resto do pessoal, a PIDE

conseguiu de uma assentada desmantelar todas as estruturas da Frelimo no Sul de Moçambique.

Não sobrou nada de nada."

O amigo fez uma expressão contemplativa enquanto considerava o que acabara de escutar.

"Há aí uma coisa que não percebo", murmurou. "Não achas estranho que o tenham separado dos restantes presos? Quer dizer, se o consideram um subversivo seria normal que..."

"Foi Salazar."

"Perdão?"

"O presidente do Conselho impediu que o maltratassem. Sabes que se encontraram os dois em Lisboa, não sabes?"

José arregalou os olhos, incrédulo.

"O Domingos esteve com Salazar?", perguntou, atónito. "Com o Toninho? Estás a gozar!..."

"Ai não sabias? Foi uns meses antes de a guerra começar. Depois daquela chatice convosco em João Belo, ele foi a Lisboa tratar de umas coisas e, quando quis regressar, a PIDE apreendeu-lhe o passaporte. Como não tinha nada a perder, o Domingos pediu para falar com o presidente do Conselho. Não que alimentasse maningue expectativas, mas pelo menos ficava com a consciência de ter tentado tudo. Agora hás-de imaginar a surpresa que ele teve quando foi chamado para uma reunião com o homem."

"A sério? O Toninho mandou-o chamar?"

"A vida tem destas surpresas", assentiu Albertina. "Salazar recebeu-o no gabinete e tudo."

"Isso é extraordinário! E o que aconteceu?"

"Nada de especial. O Salazar disse-lhe que falasse livremente e o Domingos propôs-lhe que fosse criada imediatamente uma comunidade de estados de língua portuguesa, um pouco como a Commonwealth, de modo a manter as nações que fazem parte do império dentro da esfera lusitana e impedir o"avanço do comunismo em África."

"E o Toninho? O que respondeu a isso?"

"Não se mostrou frontalmente contra a ideia, mas disse que o problema era que os movimentos africanos iam interpretar essa proposta como um sinal de fraqueza e exigiriam logo a independência, e isso não podia ser. Depois convidou o Domingos para ser deputado na Assembleia Nacional, coisa que ele recusou, claro."

Passaram o resto do jantar a falar sobre Domingos, mas depressa se tornou evidente que o tema era obsessivo e a conversa acabou por derivar para a vida em Tete e o projecto de José de usar um avião para levar a assistência sanitária a todo o distrito. O médico contou-lhe peripécias das suas aventuras no mato e Albertina apreciou especialmente o episódio da multidão que se juntou no Furancungo porque o feiticeiro branco tinha ressuscitado a leprosa.

Acabaram a refeição e combinaram reencontrar-se no dia seguinte para almoçar.

"Estou com saudades de ir ao Grego", disse Albertina. "O que achas?"

"Está combinado."

José pagou a conta e saíram do restaurante. No momento em que se despediram à porta do Kanimambo, ela agarrou-o pelo braço e fitou-o com intensidade.

"Quando amanhã te encontrares com o governador", pediu antes de entrar no seu carro, "podes perguntar pelo Domingos?"

"Com certeza", prometeu o amigo. "Farei o que puder."A manhã seguinte acordou amena, coisa a que já não estava habituado após tanto tempo submetido à severidade do clima escaldante de Tete. Saiu do Hotel Cardoso impecavelmente vestido de branco, quase como se fosse prestar assistência médica no mato, e à hora marcada apresentou-se no palácio do governo, onde pediu direcções para o gabinete do "senhor governador".

Mandaram-no aguardar numa salinha refrescada por uma grande ventoinha que rodava no tecto, onde se distraiu a ler o Notícias, o principal matutino de Lourenço Marques, e edições recentes de A Bola, que tinham acabado de chegar da Metrópole com novidades frescas sobre o sensacional apuramento do Benfica para mais uma final da Taça dos Campeões Europeus, desta vez para defrontar o Manchester United em Londres. Leu os artigos duas e três vezes, e ao fim de duas horas, quando já quase se sentia esquecido, ouviu o claque matraqueado de um par de saltos altos de sapatos de senhora a tamborilar pelo chão do palácio. Uma figura feminina, pequena e roliça, assomou à porta e fez-lhe sinal.

"Queira acompanhar-me, por favor."O gabinete do governador-geral da província de Moçambique era quase um salão. As paredes estavam cobertas de estantes com livros esmeradamente encadernados, belos quadros e soberbas estatuetas africanas em pau-preto, a maior parte de origem maconde. Havia uma grande bandeira nacional, um retrato do presidente da República e outro do presidente do Conselho, uma grande secretária de madeira exótica ricamente trabalhada e sofás elegantes sobre magníficos tapetes.