"Ora viva, doutor Branco!", trovejou uma voz. "Têm-me falado imenso das suas façanhas!"
Reconheceu o rosto que se aproximava dele de muitas fotografias que ao longo do tempo vira publicadas nos jornais. O governador-geral de Moçambique era um homem de meia-idade, com o corpo seco enfiado num fato manifestamente desajustado para o ambiente tropical. É certo que o dia nascera moderado, como era timbre do clima benigno de Lourenço Marques, mas mesmo assim fazia-lhe impressão ver alguém apresentar-se daquele modo.
"Senhor governador, agradeço-lhe a prontidão com que me recebeu..."
"Não tem de quê! Vai um whiskyzinho?"
"Com soda."
Foi só ao penetrar no gabinete que o visitante percebeu por que razão o seu interlocutor estava assim vestido. E que os aparelhos de ar condicionado encontravam-se na potência máxima e fazia ali dentro um frio quase polar. José sentiu a pele eriçar-se-lhe e esteve à beira de pedir um agasalho, mas conteve-se. Não ia dar parte de fraco.
O governador dirigiu-se ao bar e preparou dois copos de whisky com gelo, um regado a soda e outro a água, e entregou o copo borbulhante ao visitante, convidando-o com um gesto a instalar-se no sofá. Havia vários documentos espalhados pela mesinha, entre pratinhos de caju e um cesto com peças de fruta tropical variada.
"O senhor doutor vai-me desculpar o atraso com que o recebi", disse o anfitrião, acomodando-se ele próprio no sofá.
"A subversão de que estamos a ser alvo a partir dos nossos vizinhos do Norte consome-me muita atenção. Ainda há pouco tive uma reunião não agendada com o general Tomé e já estou atrasado para uma cerimónia de recepção de novas tropas marcada para daqui a pouco ali no porto, de modo que, se não vir inconveniente, vou directo ao assunto."
"Com certeza, senhor governador."
"O governador de Tete enviou-me uma exposição sobre o seu caso que muito me interessou. O
projecto de expandir a assistência humanitária a todo o distrito de Tete pareceu-me pertinente e oportuno. Sei que o senhor tem usado os aviões da Missão de Fomento e do Aero-Clube de Tete, mas que eles não chegam para as encomendas. Acontece que, como é evidente, não cabe à Missão de Fomento envolver-se na assistência sanitária. As suas responsabilidades são outras. O que nos traz à questão essenciaclass="underline" não haverá outro modo de resolver este problema?"
O médico pousou o copo na mesinha e respirou fundo.
"Haver há, senhor governador", indicou. "O que eu preciso é de um avião que esteja em permanência ao meu serviço. Considerando o volume de trabalho em todo o distrito, só assim poderemos dar resposta cabal às necessidades. Se o aparelho é da Missão de Fomento ou de outro organismo qualquer, isso pouco importa. O importante é que tenha capacidade para levantar voo e aterrar em picadas."
"O Aero-Clube de Tete não pode ajudar mais?"
"Eles já me ajudam e continuarão a ajudar. Mas não estão vocacionados para a assistência sanitária, dispõem de recursos limitados e, como calcula, têm outras preocupações."
O governador-geral pôs a mão no queixo e passeou os olhos pelo gabinete, pensativo.
"O que acha, por exemplo, da Força Aérea?", sugeriu. "Há decerto por aí uns aparelhos disponíveis..."
O médico fez um ar momentaneamente meditativo, enquanto considerava a ideia, mas acabou por esboçar uma careta de reprovação e abanar a cabeça.
"Não me parece, senhor governador", disse. "A Força Aérea é uma instituição envolvida em acções de guerra. Julgo que não é adequado associar um serviço de assistência sanitária a uma instituição dessa natureza. Os militares têm as suas prioridades e os médicos civis têm outras, porventura antagónicas. Além disso, que iriam pensar as populações? E como reagiriam os turras?
Não, não me parece adequado utilizar aviões militares."
"Então o que sugere o doutor?"
José encolheu os ombros, entre frustrado e impotente.
"Confesso que não sei", admitiu.
O governador manteve os olhos perscrutadores cravados nele, como se o desafiasse.
"Peça o impossível!"
O médico riu-se, quase desconfortável.
"O impossível? O impossível era comprar um avião, claro. Mas isso..."
Deixou a frase perder-se, consciente de que a ideia era absurda, mas surpreendeu-se ao ver o governador estreitar os olhos, como se levasse a sério a sugestão.
"Quanto custa uma engenhoca dessas?"
A pergunta deixou-o engasgado.
"Um... um avião? Sei lá... muito dinheiro."
"Quanto?"
"Bem... depende do avião, não é verdade? Eu tenho usado um aparelho muito pequeno, um
Piper Tripacer. Só tem dois lugares, mas é adequado para aterrar em picadas no meio do mato. Um
Piper Tripacer é coisa para uns seiscentos contos."
"Vá lá! Sempre é mais barato do que um Super Constellation..."
O médico soltou uma gargalhada nervosa ao ouvir o governador comparar o minúsculo Piper Tripacer com o gigantesco avião comercial usado pela TAP na carreira de África.
"Lá isso é, não há dúvida nenhuma."
"Portanto esse Piper Tripacer é o seu sonho para essa missão..."
José hesitou.
"Sonho, enfim... não direi."
"Ó doutor", exclamou o governador, como um forcado a atiçar o touro. "Peça o impossível!"
O médico engoliu em seco. Atrever-se-ia?
"Bem, o ideal mesmo era um... um Piper Cherokee. Noutro dia andei num avião desses lá no Aero-Clube e achei-o fantástico! Não sei se conhece, é um monomotor ainda suficientemente pequeno para poder aterrar em picadas, mas já dispõe de seis lugares. Nada mau. Além do mais os assentos traseiros são amovíveis, o que permite abrir espaço para transportar o que for necessário: sei lá, medicamentos, equipamento ou até duas macas com pacientes."
"Quanto custa?"
"E um pouco mais caro", retorquiu José, baixando a voz com medo de assustar. "Uns oitocentos contos."
O governador pegou no copo e começou a rodá-lo na mão, observando o gelo a girar no líquido dourado enquanto ponderava o problema. Deixou-se ficar em silêncio alguns segundos, período durante o qual o seu visitante se manteve calado, consciente de que não deveria interromper os pensamentos do anfitrião.
"Digamos que oitocentos contos me parece um valor acessível", sentenciou por fim o governador. "O Governo-Geral da Província pode entrar com trezentos. Acho que posso arranjar mais cem do BNU e outros cem do Montepio. Ficam a faltar os restantes trezentos, não é verdade?
Terá de ser o senhor doutor a arranjá-los."
"Eu, senhor governador?", admirou-se José. "Onde diabo vou eu desencantar trezentos contos?"
O governador inclinou-se para a frente e pousou o copo na mesinha com os olhos presos no seu interlocutor.
"O senhor doutor vai escrever uma carta muito bonitinha ao doutor Victor Sá Machado a expor a sua ideia", disse. "O projecto que o senhor quer erguer em Tete tem uma dimensão humana que decerto irá interessar o doutor Sá Machado."
"O doutor Machado?", interrogou-se José, tentando em vão visualizar um rosto. "Confesso que não estou a ver quem seja..."