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O anfitrião espreitou o relógio e, vendo o adiantado da hora, ergueu-se com um movimento enérgico, assinalando assim o fim da reunião.

"Ó doutor, é a Gulbenkian!", exclamou. "A fundação é que lhe vai arranjar o dinheiro que falta!"

O governador acompanhou-o até à porta e estendeu-lhe a mão em despedida. O médico hesitou em apertá-la de imediiato; tinha ainda uma derradeira questão a apresentar-lhe.

"Senhor governador", disse, enchendo-se de coragem para suscitar o assunto. "Se me permite, queria-lhe falar sobre um amigo meu que está detido na Cadeia Central da Machava. Trata-se do..."

"Doutor Rouco", atalhou o governador, antecipando o assunto. "Eu sei."

José olhou desconcertado para o anfitrião.

"Sabe?"

"Sei que são amigos e que ele está na Machava", disse. "Mas não posso fazer grande coisa. O

doutor Rouco infelizmente envolveu-se em actividades subversivas graves e teve de ser preso.

Parece até que já andou a criar problemas na Machava e a incitar outros reclusos à revolta."

Suspirou. "Enfim, é uma coisa desagradável."

"Há alguma possibilidade de... de garantir que ele, ao menos, não é maltratado?"

O governador fitou o médico com uma expressão indecifrável.

"O que vale ao doutor Rouco é ter bons amigos", sentenciou, enigmático. "E, com o devido respeito, não estou a falar do senhor. O doutor Salazar tem-lhe dado uma certa protecção e parece que também o professor Marcello Caetano, que foi professor dele na universidade, anda a tentar protegê-lo. Com este tipo de amigos, nada lhe acontecerá." O anfitrião voltou a estender a mão para se despedir. "Fique descansado que ele vai sair em breve da Machava."

A notícia arrancou um grande sorriso a José, que desta feita devolveu o cumprimento e apertou quase efusivamente a mão que lhe era estendida.

"Ainda bem, senhor governador!", exclamou com evidente alívio. "Ainda bem! Não imagina como fico contente."

O governador voltou-se e deu um passo para regressar ao gabinete, mas deteve-se e lançou um olhar ao visitante, despedindo-se com uma derradeira informação.

"O doutor Rouco vai ser transferido para a Metrópole", revelou. "Ficará detido em Peniche."

E fechou a porta.A primeira coisa que José fez quando abandonou o palácio foi descer até ao centro da cidade, entrar no Café Scala e pedir um telefone. Ligou a Albertina para lhe dar a novidade, mas ninguém atendeu e percebeu que a amiga não estava em casa. Saiu do café e foi ter com o motorista que a Secretaria Provincial de Saúde tinha posto ao seu dispor.

"Leva-me à Costa do Sol."

O automóvel percorreu a grande marginal em ritmo de passeio, as janelas abertas para deixar entrar o ar revigorante do mar. A longa mancha azul do Índico enchia o horizonte à direita, apenas recortada pela longínqua ilha da Inhaca. O areal das praias começava junto ao alcatrão e estava semeado de árvores, sobretudo ao lado da marginal. Viam-se revoadas de mulheres que aproveitavam a sombra das copas para se protegerem do calor e venderem capulanas coloridas, enquanto alguns rapazes andrajosos acenavam com sacos de caju e homens fardados de branco aguardavam ao lado de enormes frigoríficos motorizados da Esquimó que lhes comprassem os sorvetes.A marginal desembocou num grande parque de estacionamento onde já havia poucos lugares. O médico saiu do carro, tirou os sapatos e calcorreou o areal da praia até molhar os pés à borda da água. Deu alguns passos com o mar sempre rasteiro e viu cem metros adiante pessoas que tinham a água apenas pela cintura, mas José nunca aprendera a nadar e preferiu voltar para trás e instalar-se à sombra de um pinheiro.

Quando a hora chegou calçou os sapatos e caminhou até ao restaurante, um edifício longo em Art déco, branco como se fosse de cal e com a vasta varanda entremeada por colunas azuis que sustentavam o primeiro andar. O estabelecimento chamava-se Restaurante Costa do Sol, mas todos o conheciam por O Grego, devido à nacionalidade do proprietário. Varreu a varanda com o olhar e não a descortinou. Ainda pensou em voltar mais um bocado para a praia, mas verificou que já havia poucas mesas livres e achou que o mais prudente seria ocupar uma delas.

Albertina chegou atrasada. Não explicou os motivos e o amigo presumiu que houvesse política pelo meio, ou talvez apenas esforços mais ou menos confidenciais para chegar ao marido, pelo que nada lhe perguntou. Pediram um prato de camarões grelhados, especialidade da casa, e duas

Laurentinas, e quando o empregado se afastou José deu-lhe a novidade de que o marido ia ser transferido para uma cadeia da Metrópole.

"Não me surpreende nada", disse ela com o rosto fechado. "Fizeram uma lei a permitir transferências de reclusos entre a Metrópole e o Ultramar. Sempre suspeitei que essa lei foi feita a pensar exclusivamente nele."

"Vê a coisa pelo lado positivo", sugeriu o amigo. "Isso significa que se querem assegurar de que nada lhe acontece e é bem tratado. O governador confirmou-me que até o Toninho o protege."

Conversaram sobre o encontro que José tivera nessa manhã e só mudaram de tema quando os camarões foram servidos. Estavam deliciosos, como de costume no Grego, e perceberam que era impossível continuar a falar de desgraças enquanto se lambuzavam com semelhante iguaria. O tom tornou-se assim mais ligeiro.

O médico estava preocupado com a mulher do amigo e sentia uma certa responsabilidade para com ela, em particular naquelas circunstâncias, pelo que a acompanhou todo o dia. Depois do almoço foram passear na Baixa e ver uma fita americana no Cine Varietá.

No fim decidiram ir jantar ao local mais fino de Lourenço Marques. Como era seu hábito, a melhor sociedade laurentina juntara-se no ambiente requintado da esplanada do Hotel Polana.

Entre copos de whisky e champanhe servidos por empregados impecavelmente fardados, os frequentadores da esplanada discutiam a vivenda com que sonhavam no magnífico bairro vizinho de Sommerschield, com jardim e piscina azul- turquesa, ou o fim-de-semana espectacular que iriam passar à Ponta do Ouro, ao Bilene ou à ilha da Inhaca, a mesma ilha cujas luzes ténues cintilavam na mancha escura do Indico diante do hotel; pareciam dançarinas a seduzir os refinados frequentadores da esplanada do Polana.

"As pessoas aqui em Lourenço Marques não fazem ideia de que há uma guerra a ser travada em Moçambique", observou Albertina, após uma pausa em que escutaram a conversa numa mesa vizinha. "Acham que existem uns problemazitos de bandidagem lá no Norte e é tudo. Algumas chegam a dizer que é um exagero mandar tanta tropa para lá!..."

Depois de deixar a amiga em casa, José voltou para o Cardoso e combinou com o motorista que o recolhesse logo pela manhã para o levar ao aeroporto. O dia havia sido longo e foi com alívio que chegou diante da porta do quarto. Estava cansado e só queria atirar-se para a cama e dormir.

Meteu a chave na fechadura e abriu a porta.

A cama estava feita, como seria de esperar, mas estranhou ver umas jeans dobradas em cima da cadeira. Não usava calças de ganga e estacou, num instante de total perplexidade, até perceber o que acontecera: tinha-se enganado no quarto! Recuou um passo e voltou para a porta, mas ao girar o corpo viu uma mala pousada no chão e reconheceu-a. Era a sua mala. Ou pelo menos tratava-se de uma mala igualzinha à sua. Ficou momentaneamente desconcertado, sem saber o que pensar nem como proceder. Estava ou não no seu quarto? Olhou para o número da chave, 206, e para o número da porta, 206.