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"Tenho de chegar antes das três", murmurou de respiração entrecortada, num esforço para se motivar e buscar energias onde as perdia. "Às três fecha." A respiração era já um resfolegar intenso.

"Força! Tenho de conseguir!"

A rua parecia inclinar-se ainda mais e a rapariga, olhando para a curva que não parava de subir, sentiu-se desanimar.

"Não posso mais!", expirou. "Não posso..."

Esforçava-se por continuar a correr, por lutar contra o desfalecimento iminente, mas as pernas deixaram de lhe obedecer e, já insensíveis, como pedras que escapam ao controlo, enroscaram-se uma na outra e a rua começou a rodopiar e a rapariga viu-se de repente no chão e a mente num torvelinho e os pulmões exangues e o corpo dorido.Uma dor raspada nasceu-lhe dos joelhos.

"Ai!", gemeu.

Ofegante, ficou um longo instante a tentar regularizar a respiração. Quando sentiu as forças voltarem, olhou em redor e fixou o corpo. Começou a perceber que se estatelara no passeio. Mexeu as pernas e a dor nos joelhos recrudesceu.

"Ai, ai, ai!"

Levantou devagar um joelho e viu-o esfolado, as peles de chocolate rasgadas e o sangue a pingar num vermelho-escuro. Caíra mal. Tentou erguer-se, mas uma pontada no outro joelho fez-lhe ver que teria dificuldades.

Ouviu o som surdo de uma porta a bater e voltou a cabeça. Um Opel branco de capota azul imobilizara-se na berma da rua. Viu uns sapatos brancos a aproximarem-se.

"Então? Caíste, miúda?"

Era uma voz de homem e falava português como os da Metrópole. A rapariga levantou a cabeça e fitou o desconhecido. O homem vestia todo de branco e inclinava-se na sua direcção, os olhos castanhos a avaliarem os joelhos ensanguentados.

"Dói-te muito?"

A rapariga gemeu e assentiu com a cabeça. Depois de estudar a posição do corpo, o recém-chegado pôs-lhe as mãos nos braços e levantou-a com cuidado.

"Anda, vou-te levar ao hospital."

Ao sentir o movimento, a rapariga gemeu com mais força. "Dói!"

O desconhecido de branco suavizou os gestos, mas continuou a erguê-la.

"Eu sei, miúda. Já vamos tratar disso, não te preocupes."

O homem segurou-a bem e encaminhou-a devagar para o Opel. Abriu a porta, instalou-a no assento do passageiro e, contornando a viatura pela frente, foi ele próprio sentar-se no lugar do condutor. Ligou a ignição, fez marcha atrás, posicionou o carro e começou a subir a rua.

"Então? Estás melhor?"

A rapariga cerrou os dentes, num esforço para controlar a dor, e fez que sim com a cabeça.

"Como te chamas?"

"Sheila."

O homem de branco mantinha os olhos na estrada, mas uma vez por outra olhava-a para se certificar de que ela se encontrava bem.

"Onde ias tu com tanta pressa?"

"Ao hospital."

Intimidada pelo desconhecido, Sheila respondia por monossílabos. Não estava habituada a lidar com brancos da Metrópole, que habitualmente apenas via à distância e que a deixavam pouco à vontade quando por acaso se aproximavam.

"Bem, para o hospital vais tu agora", disse ele. "Mas o que ias lá fazer, não me dizes?"

"Ia ver a vovó."

O condutor olhou-a de relance com um brilho levemente intrigado.

"A tua avó está no hospital?"

A rapariga confirmou com um gesto rápido da cabeça.

"O que tem ela?"

"Bilharziose."

O homem de branco cerrou o sobrolho enquanto a mente processava a informação.

"Bilharziose, hem?", murmurou, embora fosse claro que a observação era retórica, formulada mais para ele próprio do que para ela. Como se a mente lhe tivesse fornecido a resposta, arregalou os olhos. "Não me digas que a tua avó é a senhora da cama 14..."

Ao ouvir a referência, o olhar da rapariga iluminou-se e assumiu uma expressão admirada.

"lá", confirmou. "Como sabe?"

O homem de branco sorriu.

"Sou o director do hospital", identificou-se.

Sheila carregou as sobrancelhas, desconfiada. Já ouvira inúmeras referências ao director do hospital e com certeza não era aquele.

"O senhor é o director do hospital?"

Formulou a pergunta numa voz desconfiada, deixando claro pelo tom que sabia muito bem quem era o responsável pelo hospital e que não se deixaria ludibriar pela primeira patranha que lhe contassem.

"Sou pois."

A rapariga abanou a cabeça, desaprovadora. Não gostava que se divertissem com ela.

"Oh, está a brincar! Toda a gente sabe que o director é o doutor Branco."

O homem ao volante voltou o rosto para a frente e, com a rua já a nivelar-se na horizontal, pôs o pé no travão e abrandou diante do portão do hospital.

"E quem pensas tu que eu sou?"

A irmã Lúcia esticou o adesivo, cortou uma faixa e assentou-a sobre o algodão. Repetiu o gesto instantes depois, mas colou a nova faixa de adesivo na perpendicular, em cruz. Apesar de estar ajoelhada perante a jovem paciente, recuou e contemplou o curativo com uma expressão aprovadora.

"Está feito!"

A freira ergueu-se e ajudou a rapariga a descer da marquesa.

"Ainda dói um bocadinho", constatou Sheila.

"Já pasa", disse a irmã Lúcia no seu português espanholado, habituada que estava a coisas bem piores. " Puedes ir para casa."

A rapariga fez beicinho.

"Mas eu quero ver a minha vovó..."

"La hora de las visitas já acabou, minha nina", anunciou a freira. "Vais ter de voltar mariana."

Sheila suspirou, resignada, e andou com cuidado em direcção à porta. A irmã Lúcia ficou a observá-la, tentando perceber se ela estava em condições de fazer caminhadas. O ar dorido da rapariga deixou-a na dúvida.

"Escucba, onde vais?"

"Para casa, claro." "A pé?"

Sheila pareceu embasbacada.

"Pois... iá, claro."

A freira fez uma careta e, vencendo uma hesitação, esticou a cabeça em direcção ao corredor.

"Doutor Branco!"

"Sim, Lúcia? O que é?"

A voz do director viera do gabinete no fundo do corredor.

"La nina vai para casa, pero mal puede andar."

O médico emergiu da porta e aproximou-se; tinha o estetoscópio ao peito e um semblante interrogador.

"Então, Sheila? Já não queres ver a tua avó?"

A rapariga olhou para a freira espanhola, atrapalhada, e baixou a cabeça.

"A irmã Lúcia disse que a hora das visitas já acabou..."

José Branco parou diante da jovem paciente e passou-lhe os olhos pelos joelhos para se certificar de que os curativos estavam devidamente aplicados. Precaução inútil, sabia muito bem. A minúscula irmã Lúcia era conscienciosa nos seus deveres.

"E disse maningue bem", afirmou. "Mas acho que desta vez podemos abrir uma excepção." Fez um sinal com a cabeça. "Anda daí, vamos lá ver a tua avó."

Sheila arregalou os olhos negros.

"A sério?"

"Ficas cá o tempo que quiseres e, quando tiveres de te ir embora, avisas aqui a irmã Lúcia, ouviste?" O médico virou-se para a freira. "O Lúcia, o Luís depois que a leve a casa."

"Muy bien."

O director abandonou o edifício principal com a rapariga atrás dele, atravessou o pátio e entrou numa enfermaria. Percorreu as camas até se imobilizar aos pés da 14. Uma velha de cabelo branco e corpo engelhado fitou-o com curiosidade.