"Dona Aissa, tenho aqui uma visita para si."
Os olhos da velha deslizaram para a figura delgada que apareceu atrás do médico.
"Sheila! O que estás aqui a fazer?"
"Vim visitá-la, vovó."
"A esta hora? O que tens nos joelhos?"
Alheando-se da conversa entre neta e avó, José Branco pegou no relatório clínico da paciente pregado ao gradeamento da cama e estudou-o. O documento era assinado pelo doutor Feitor e referenciava o diagnóstico de bilharziose em Aissa Mussa. Estava-lhe a ser ministrado Ambilhar, medicamento adequado para aquelas situações, mas o director do hospital sabia que aquele fármaco produzia perturbações no sistema nervoso central. Fez um esforço de memória e lembrou-se que tinha sido ele próprio quem dera ordem de baixa à paciente após um episódio em que ela nem a família reconhecera.
Arrumou o relatório e pigarreou, interrompendo a conversa entre as duas.
"Então, dona Aissa? Como se sente hoje?"
A paciente virou o rosto macilento para ele.
"Vai-se andando, senhor doutor. Às vezes tenho umas dorzinhas, mas aguenta-se."
"Ainda deita sangue quando tosse?"
Acto contínuo a idosa tossiu, provavelmente sugestionada pela pergunta. Depois respirou fundo.
"Um pouquinho, sim. Mas já está melhor."
"E as fezes?"
A palavra extraiu uma expressão opaca de Aissa.
"Como diz, senhor doutor?"
"O cocó", esclareceu ele. "Apareceu algum sangue no cocó?"
A mulher olhou de relance para a neta, talvez melindrada por abordar diante dela um assunto tão embaraçoso.
"Também está melhor, senhor doutor", murmurou. "O sangue aparece menos vezes."
"Quando foi a última vez?"
"Ontem depois do almoço. Iá. Mas foi só um pedacito."
O médico aproximou-se da mesinha-de-cabeceira e pegou na pequena embalagem branca de
Ambilbar ali pousada.
"Tem-se dado bem com o remédio?"
A mulher fez uma careta.
"Às vezes fico um poucochinho baralhada."
"Não há-de estar assim tão mal", observou José com um sorriso amigável. "Ainda há instantes não teve qualquer dificuldade em reconhecer a sua neta..."
Aissa voltou o rosto para a rapariga, estendeu a mão fraca para lhe tocar no braço e sorriu, exibindo a boca desdentada.
"Hoje não, graças a Deus. Reconheci a minha Sheila maningue bem. Alá é grande!"
"E o resto da família? Tem reconhecido toda a gente quando a vêm visitar?"
"Qual resto da família, senhor doutor?"
Os olhos desconcertados de José dançaram entre Aissa e Sheila, como se procurassem resposta para a pergunta inesperada.
"Bem... sei lá", gaguejou. "Os pais da sua neta, por exemplo. Não vieram ver a senhora?"
A mão fria de Aissa cravou-se com mais força no braço da rapariga a seu lado.
"A Sheila é órfã, senhor doutor. A minha filha morreu quando a Sheila tinha cinco anos e depois faleceu o meu genro. Agora sou eu quem trata dela, coitadinha. Dela e dos irmãos mais novos, o Maomé e o Malaquias. Estão todos ao meu cuidado."
O director do hospital coçou a cabeça.
"Então e agora que a senhora está internada quem cuida dos seus netos?"
Aissa suspirou pesadamente.
"Ai, senhor doutor! Nem me fale nisso! Eles estão entregues a si mesmos, coitadinhos! Ando maningue ralada com isto! Nem imagina!" Fez um gesto vago indicando a cama onde estava deitada. "Mas que posso eu fazer, senhor doutor? Estou aqui internada e não tenho modo de os ajudar..."
"Os seus netos estão entregues a si mesmos?"
"Alá é grande e cuidará deles."
O médico apoiou-se noutra perna, incomodado e repentinamente impaciente.
"Oiça, não é que eu queira duvidar dos poderes de Alá, mas parece-me que isso não chega."
"Que posso eu fazer, senhor doutor?", perguntou ela num queixume. "Foi o senhor mesmo que me internou, sabe muito bem que não posso sair daqui..."
José olhou pensativamente para a rapariga. Sheila era uma moça bonita de pele trigueira, estranha mistura de português e negro, mas com o indiano a dominar; tinha um rosto bolachudo, longos cabelos negros e um olhar vivo.
"Olha lá, Sheila", interpelou-a. "O que sabes tu fazer?"
A rapariga quase se encolheu quando percebeu que era a ela que o director do hospital se dirigia.
"Eu, senhor doutor? Estou a aprender costura."
"E gostas?"
Sheila baixou a cabeça e manteve-se calada, como se tivesse vergonha de falar sobre o assunto.
Foi a avó que respondeu no seu lugar.
"Ela não gosta, mas tem de ser. Precisamos que faça uns tostões lá para casa, senhor doutor."
O médico cravou o olhar na rapariga, que se mantinha cabisbaixa, e sentiu uma inexplicável piedade dela.
"Não queres ser costureira?"
Sheila abanou a cabeça quase imperceptivelmente.
"Então o que gostarias tu de ser?"
Ela respirou fundo, como se ganhasse coragem, e olhou timidamente em redor. A enfermaria recortava-se sob a meia-luz metálica do início da noite; um clarão ténue fluía pelas janelas e desenhava com as sombras bizarras figuras espectrais que se estendiam no chão e trepavam pelas paredes. No exterior tinham sido ligadas lâmpadas amarelas, atraindo insectos zumbidores e projectando um halo irreal nos corredores. Alguns pacientes tossiam e outros gemiam de mansinho, os movimentos quebrados sob os lençóis, se calhar alheios, talvez atentos à conversa que se rumorava na cama 14 e que por momentos ficara suspensa.
Vencendo a timidez, Sheila ergueu por fim a cabeça e encarou o director do hospital.
"Enfermeira."
, *
Havia já algum tempo que José Branco sentia necessidade de ter uma enfermeira oriunda da zona onde operava. Além das freiras, as enfermeiras que serviam no hospital eram portuguesas ou cabo-verdianas e não entendiam nhungué, o dialecto de Tete. Precisava por isso de recrutar uma pessoa da terra.
Além do mais, as necessidades de serviço iriam em breve sofrer um incremento significativo. O
BNU e o Montepio tinham aprovado o donativo solicitado pelo governador-geral e a Gulbenkian aceitara entrar com o dinheiro que faltava para comprar o avião. A fundação mostrara-se de tal modo entusiasmada com a ideia que até se comprometera a pagar os dois primeiros anos de manutenção do aparelho. O dinheiro não dava ainda para contratar um piloto, e por isso ele próprio já começara a ter lições no Aero-Clube de Tete e esperava tirar o brevet daí a pouco tempo.
Por outro lado, as responsabilidades de José haviam sido alargadas. Fora recentemente nomeado delegado de saúde e ainda presidente da Cruz Vermelha de Tete.
As coisas avançavam depressa, pelo que precisava de compor um quadro de pessoal sanitário adequado. Aquela rapariga falava fluentemente português e nhungué e queria ser enfermeira.
Qual a dúvida?
Depois de ponderar a situação, pediu a Lúcia que mandasse Sheila ir ter com ele quando aparecesse no hospital para ver a avó. Isso aconteceu logo na tarde do dia seguinte. O médico acompanhava um paciente à porta quando viu a rapariga sentada diante do seu gabinete; mandou-a entrar e sentar-se na cadeira habitualmente reservada aos doentes.
"Queres vir trabalhar aqui para o hospital?", propôs-lhe. "Temos uma vaga para recepcionista."
O olhar da rapariga incendiou-se.
"Está a falar a sério, senhor doutor?"
"Tenho por acaso ar de brincalhão?", perguntou o médico, fingindo uma expressão severa.
"Claro que estou. Queres ou não o lugar?"
"Quero, pois!", aceitou ela apressadamente, quase com medo de que a proposta fosse retirada, mas de imediato esboçou uma expressão inquisitiva. "O que faz uma recepcionista, senhor doutor?"