"Uma recepcionista recebe os pacientes", explicou ele. "Preciso de alguém que fale nhungué e que faça com que as pessoas se sintam bem acolhidas. Dentro em breve é possível que tenhamos um avião que traga doentes que se encontram no meio do mato e que nem português falam. Vais ter de falar com eles, traduzir o que dizem e o que lhes dizemos e fazer com que não estranhem em demasia o ambiente que vão aqui encontrar. Achas-te à altura dessa tarefa?"
Sheila sentia-se tão excitada que não conseguiu permanecer no seu lugar. Ergueu-se por isso de um salto, como se tivesse sido impelida por uma mola, o entusiasmo a fervilhar-lhe no corpo.
"Quando começo?"
O director do hospital sorriu ao vê-la tão excitada.
"Segunda-feira."
A tarefa serviu para testar as capacidades da rapariga. Sheila respondeu com empenho, abraçando as suas funções com a força de quem sabe que a vida é um jogo de oportunidades.
Abandonou de imediato o curso de costura e a sua existência passou a ser dedicada quase exclusivamente ao hospital, onde passava o dia a acompanhar os doentes e a servir de intérprete das suas variadas maleitas.
Algum tempo depois, no final de um dia particularmente cansativo, José Branco deu com a nova recepcionista sentada num banco do varandim do hospital, os olhos a errarem algures pelo pátio interior.
"Então, Sheila? Cansada?"
"Puf, senhor doutor! Nem me diga nada! Apareceu aí uma família inteira com varíola e tive de ajudar o doutor Feitor a falar com eles. Foi a tarde toda nisso!"
O médico calcorreou o varandim e instalou-se no banco ao lado da rapariga.
"Isto é mais duro do que parece", suspirou, também ele fatigado. "Ainda queres ser enfermeira?"
Sheila, que languescia ao calor do final da tarde, ganhou súbita energia, como se nesse instante alguém a tivesse ligado à corrente.
"Então não quero, senhor doutor?! E o meu sonho!"
"Olha que esta vida é difícil!...", observou, a voz arrastada. "Exige força mental, física e espiritual. Uma enfermeira lida com a miséria humana mais degradante e é preciso ser forte para aguentar isso. Este trabalho não é pêra doce, menina! Isto não é vestir a bata e pôr o cup na cabeça e andar por aí a abanar o rabo. Isso é nos filmes, não é a realidade. A realidade é muito dura e requer um grande espírito de sacrifício. Não é qualquer pessoa que pode ser enfermeira."
"Isso já eu percebi, senhor doutor. Basta ver o que se passa neste hospital para entender."
"E então?"
"Continuo a querer ser enfermeira. Já lhe disse que é o meu sonho e nada me fará mudar de ideias."
José Branco contemplou o perfil escurecido de um embondeiro recortado pelo céu avermelhado do pôr do Sol e voltou a suspirar; desta feita, contudo, o suspiro era o de quem acabara de tomar uma decisão.
"Que idade tens tu?"
"Dezassete anos, senhor doutor."
O médico levantou-se do banco com esforço e endireitou-se, alongando o tronco como se o exercitasse.
"Muito bem!", disse. "Vou falar com Lourenço Marques e submeter o teu nome a candidatura."
O mais difícil foi convencer a avó. Aissa nem queria ouvir falar em deixar a neta sair de casa para ir a uma cidade longínqua lá no Sul, ainda por cima com reputação de urbe licenciosa, submeter-se ao exame de candidatura ao curso de Enfermagem.
"Xi, patrão! Aquilo não é sítio para a minha Sheila!"
Confrontado com a intransigência da idosa, que entretanto já tivera alta e regressara à sua palhota para criar os três netos, José moveu influências e conseguiu convencer as autoridades sanitárias da província a voarem até Tete para fazerem o exame à jovem candidata.
No dia do teste, Sheila entrou na sala a tremer de nervosismo. Começou a responder às perguntas com o coração na boca, a garganta apertada e as mãos a tremerem, mas ao fim de alguns minutos sentiu que dominava a situação e foi-se acalmando. A experiência que já acumulara a trabalhar no hospital revelou-se decisiva e, para sua própria surpresa, deu-lhe respostas para todas as questões que lhe apresentaram.
Quando semanas depois vieram os resultados dos exames a todas as candidatas de Moçambique, aguardava-a uma novidade. Ficara em primeiro lugar. Tratava-se de uma vitória, mas também de um problema. É que o curso de Enfermagem era ministrado em Lourenço Marques e não havia ginástica nem jogo de influências que resolvesse isso.
"Não, não!", disse Aissa peremptoriamente, ao ouvir expor a ideia. "Nem pensar!"
José Branco já aguardava aquela resposta, mas sabia que teria de ser persistente e inteligente.
"Oiça, eu pago os estudos."
"Não é isso, senhor doutor! Eu não quero a minha neta lá em Lourenço Marques! Aquilo é terra maningue depravada!"
"Que é isso, Aissa? Não há depravação nenhuma!"
"Então não há, senhor doutor?! Então eu não sei?!"
"Ela vai com a minha protecção e estará à guarda de amigos meus. Pode ficar tranquila quanto a isso."
"O lugar da Sheila é aqui comigo e com os irmãos."
"Eles também podem ir com ela. Eu pago os estudos de todos."
"Não, não, não!"
O médico inclinou a cabeça, o olhar reprovador.
"O Aissa, veja a sua idade. E se lhe acontece alguma coisa? O que vão fazer os seus netos? Ficam na miséria, entregues a si mesmos?"
A velha muçulmana permaneceu um longo momento a fitar o médico; o problema, na verdade, horrorizava-a. Sabia que a qualquer momento poderia morrer, por mais misericordioso que fosse Alá a idade era o que era e não havia modo de lhe escapar. Que aconteceria aos seus netos? Como se desembaraçariam eles? Tantas vezes pensava nisso antes de adormecer e agora aquela possibilidade era-lhe apresentada assim, sem mais, desígnio da Providência. Seria Alá a lançar-lhe um aviso pela boca daquele branco?
Sentindo-a hesitar, José percebeu que a porta se entreabrira; faltava desferir a estocada final.
"O curso é uma garantia. Deixe-os ir para Lourenço Marques. Eu pago-lhes os estudos e eles ficarão com uma enxada que os ajudará na machamba da vida. Essa é a maior prenda que a Aissa lhes pode oferecer."
Levou ainda mais meia hora de conversa mole, mas Aissa estava conquistada muito antes de dar a luz verde final.
"Trate então deles, senhor doutor", concedeu por fim. "Dê- lhes a enxada para a vida."
Os irmãos de Sheila, porém, nem queriam ouvir falar na ideia. Irem para Lourenço Marques estudar? Maomé rejeitou a proposta liminarmente e Malaquias foi ainda mais rápido. A surpresa, porém, veio de Sheila. Embora não recusasse a sugestão, a sua manifesta falta de entusiasmo surpreendeu o médico.
"Eu não sei, senhor doutor."
"Como, não sabes? Então tens esta oportunidade para realizares o sonho de ser enfermeira e estás agora a dizer-me que não sabes?"
Ela baixou a cabeça, acabrunhada e incapaz de o olhar.
"Pois, não sei..."
"Então para que te candidataste ao curso? Para que foste fazer o exame de candidatura? Para não ires?"
A rapariga fechou-se em si mesma e, após balbuciar umas respostas sincopadas e em monossílabos, o director do hospital sentiu-se exasperado. Incapaz de extrair o sim dela, desistiu e abandonou a palhota em direcção ao carro. Sheila acompanhou-o, cabisbaixa, mas quando sentiu que estava suficientemente longe dos ouvidos da avó murmurou:
"Tenho um namorado."
José arregalou os olhos.
"O quê?"
Ela olhava para todos os lados excepto para o médico, tão embaraçada se sentia com a confissão.
"Chama-se Ismael. Se eu for para Lourenço Marques, não o vejo mais."