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O médico fitou-a um longo momento, primeiro atónito, depois com um sorriso a formar-se no rosto.

"Ah, já estou a perceber!", exclamou. "E por isso que não queres ir? Por causa do teu namorado?"

Ela fez que sim com a cabeça.

"O que faz ele?"

"Foi agora para a tropa."

José ponderou a situação e tentou achar maneira de contornar o problema. O facto é que o hospital tinha falta de enfermeiras moçambicanas que comunicassem com os pacientes que não falavam português e Sheila parecia-lhe perfeita para o lugar.

Nem que revolvesse o céu e a terra, ela iria tirar o curso de Enfermagem e ajudá-lo a melhorar a assistência no hospital. Para isso precisava apenas de desatar aquele nó.

"E se eu arranjar maneira de o transferir para Lourenço Marques? Achas que isso resolvia a coisa?"

Sheila ergueu a cabeça e encarou-o pela primeira vez, os olhos a brilharem de esperança. Estava encontrada a solução.Primeiro foi um zumbido. A multidão pareceu despertar da letargia e as cabeças puseram-se a girar pelo firmamento azul, voltando-se de um lado para o outro em busca da fonte do barulho. Uma voz gritou "ali!" e logo um e outro braço se ergueram a indicar a direcção, comandando os olhares para um pequeno ponto que cortava o céu como uma varejeira distante.

O avião perdeu rapidamente altitude e aproximou-se da multidão que enchia a placa do Aero-Clube de Tete. O comandante Trovão mandou os seus homens afastarem algumas pessoas que deambulavam pela pista, de modo a viabilizar a aterragem, mas o aparelho, em vez de se enquadrar com a faixa de terra batida para pousar, virou-se directamente para a multidão. Um clamor de "ah!" e "oh!" encheu o aeródromo do Aero-Clube e algumas pessoas assustaram-se e desataram a correr para tentar escapar à máquina voadora que apontara na sua direcção e crescia sem cessar. Deixara de ser uma mosca inofensiva e transformara-se numa ameaçadora ave de rapina metálica.

Um fragor infernal encheu o ar quando o Piper Cherokee sobrevoou as cabeças em voo rasante e voltou a ganhar altitude.Um alarido excitado percorreu a multidão. Parecia que uma corrente eléctrica unia os espectadores, cruzando comentários e observações em clima de grande agitação.

"Viram? Viram?"

"E ele! É mesmo ele!"

"lá!"

Não foi tanto a emoção da razia que emocionou os presentes, embora aquela passagem temerária tivesse desempenhado o seu papel, mas a mera visão do aparelho que os sobrevoara. O

avião cintilava no céu, pintado de branco com uma faixa azul e ostentando enormes cruzes vermelhas nas asas e na cauda, a matrícula CR-AKS inscrita na carlinga, o que eliminou as dúvidas que pudessem restar quanto à sua identidade.

O Piper Cherokee enquadrou-se enfim com a pista e, balouçando no ar, acabou por tocar na terra, levantando súbitas nuvens de pó alaranjado, e abrandou em apenas alguns metros; rolou aos soluços para fora da pista e aproximou-se da placa com o motor a arfar de mansinho e a hélice a levantar torvelinhos de poeira como uma ventoinha zangada.

A multidão abriu alas e o aparelho imobilizou-se diante do casinhoto que funcionava como torre de controlo, onde o aguardavam as entidades oficiais, encabeçadas pelo governador do distrito, pelo bispo, pelo director da Missão de Fomento, pelo comandante da PSP, pelo chefe distrital da PIDE e pelo director do Aero-Clube.

O motor engasgou-se e morreu de repente, como se alguém o tivesse esganado. As hélices imobilizaram-se com um suspiro e um silêncio absoluto impôs-se no aeródromo. Acto contínuo, as portas do avião abriram-se e José, espreitando para o exterior, acenou às várias dezenas de pessoas que ali se haviam deslocado para o acolher.

Uma ovação prolongada eclodiu nesse momento, recebendo o agora médico-aviador, que descia já do aparelho em pose triunfaclass="underline" parecia um descobridor a desembarcar no Novo Mundo. As palmas foram apenas quebradas pelos primeiros acordes do hino nacional tocados pela banda da PSP. A multidão pôs-se então em sentido e cantou com ímpeto, a garganta e os pulmões a darem o máximo, os versos que glorificavam os heróis do mar.

Logo que o coro de vozes berrou "marchar, marchar!" e a banda emudeceu, o governador tirou várias folhas de papel do bolso, ajeitou os óculos e, aproximando-se do microfone improvisado diante do casinhoto, afinou a voz com o bmm-bmm da praxe e lançou-se no discurso com o verbo inflamado que a ocasião impunha.

Começou por citar o poeta "nas suas imortais palavras" e disse "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce", momento em que apontou para o avião e esclareceu ser aquela a obra, logo acrescentando que "Deus quis que a terra fosse toda una, que o ar unisse, já não separasse". Os mais versados em poesia estranharam a referência ao "ar", sabiam que o verso mencionava antes o

"mar", mas atribuíram a alteração à natureza da obra, o avião, e fizeram bem porque essa era realmente a intenção do ilustre orador, homem parco em palavras que terminou o discurso a apontar para a multidão e a citar novamente o poeta, "quem te sagrou criou-te português", e logo concluiu com um brusco e sentido "viva Portugal!", exclamação imperial que se perdeu na oscilação indiferente do capim ao longo da savana africana.

Depois das palmas, o bispo aproximou-se do avião devidamente paramentado e acompanhado por dois acólitos, ergueu a cruz e pronunciou umas frases em latim que um dos presentes bichanou para o lado a informar com erudição que o bispo fazia o Urbi et orbi, observação prontamente desmentida por um ouvido mais atento, "disparate, o Urbi et orbi é a bênção do papa na Páscoa e no Natal!", mas logo o bispo mudou para português, disse "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo", e a cada referência a cada elemento da Santíssima Trindade lançou água benta sobre o aparelho e arrancou novas palmas da multidão.

Falara o estado e benzera a Igreja; faltava a consagração pagã. No seu tradicional fato branco, agora ornamentado no peito com insígnias douradas a exibirem um círculo alado com Moçambique no centro, que ele próprio concebera e desenhara e a mulher bordara, José Branco pegou na garrafa de champanhe que a irmã Lúcia lhe estendeu e entregou-a a Mímicas, nomeada

"madrinha do avião". A mulher do médico aproximou-se do aparelho, alguém gritou "força com isso!", ela ganhou balanço e atirou a garrafa com toda a gana e esmigalhou-a contra a carlinga do

Piper Cherokee branco de faixa azul, molhando as cruzes vermelhas com as lágrimas chiques e adocicadas de Dom Pérignon.

Foi assim inaugurado, naquele final de manhã de 1968, o Serviço Médico Aéreo, obra criada em Tete para "que o ar unisse, já não separasse".

Uma tabuleta de madeira assinalava "Fingué" ao lado da pista. José acabara de aterrar e guinou o avião para a direita, apro- ximando-o do jipe estacionado diante de uma multidão. Desligou o motor, percorreu os olhos pela check list para a verificação final, e encarou a irmã Lúcia, sentada no lugar ao lado.

"Vá por dentro", disse, indicando-lhe o interior do aparelho. "Preciso que me ajude a descarregar o correio e os medicamentos."

"St, doutor."

Abriu então a porta do avião e saltou para fora. Todos os olhos estavam pousados nele.

"Prepare-se, doutor", gritou uma voz proveniente do jipe. "Clientes é mato."

Contemplou a multidão que se concentrara ali perto. As pessoas pareciam agitadas, como se a mera visão da aeronave tivesse desencadeado uma corrente nervosa que a todos percorria.