Consultou o relógio; o horário era apertado, tinha reservado pouco tempo de atendimento para a população do Fingué e não havia nem um minuto a perder. Contornou a asa até à traseira do aparelho e fez sinal para o pessoal do jipe.
"Trouxe o correio", anunciou. "Venham buscá-lo."
Abriu a porta traseira do avião e deu com a irmã Lúcia a empurrar duas caixas de medicamentos na sua direcção. Pegou nelas e pousou-as sobre o capim rasteiro. Depois retirou uma sacola com a sigla C.T.T. impressa nas faces laterais e vasculhou no interior até extrair três envelopes e uma pequena encomenda endereçadas a destinatários no Fingué. Os homens já se tinham abeirado do avião e espreitavam-lhe sobre os ombros; viviam uma semana inteira à espera daquele momento.
"Essa é para mim, doutor?"
Várias mãos ansiosas estenderam-se na direcção do médico, que lhes entregou os sobrescritos e a encomenda.
"Deve ser, não sei. As cartas têm os nomes."
Um dos homens agarrou um envelope e, logo que passou os olhos por ele, pôs-se a dançar.
"Ena, é mesmo para mim!"
José ajudou a irmã Lúcia a apear-se e fez sinal aos homens a quem acabara de entregar o correio.
"Mandem avançar o pessoal."
O pedido gerou esgares de admiração.
"Mas, ó doutor, não vai antes um cafezinho?"
O médico ergueu o braço e bateu com o dedo no relógio.
"Só tenho duas horas", anunciou. "Preciso de estar às três no Zumbo para voltar a Tete às seis.
Vamos lá, despachem-se!"
Sentou-se na abertura da porta e ficou a ver a multidão encaminhar-se num tropel na sua direcção. A irmã Lúcia cortou o caminho aos pacientes e, com a autoridade de um sargento, gritou
"façam bicha!" e em alguns segundos as pessoas formaram uma longa fila que se estendia para lá da saída do aeródromo.
José olhou para o tamanho da fila e quase desfaleceu; era demasiada gente para apenas duas horas. Percebeu que precisava de arranjar um método mais expedito de lidar com tantos pacientes e, na pressão do momento, teve uma ideia. Sabia quais as doenças mais comuns nas populações que viviam no mato e era só uma questão de proceder a uma triagem eficiente. Pôs-se de pé e juntou as mãos como uma concha à frente da boca, à maneira de um megafone.
"Quem tem sangue no chichi forme bicha!", gritou, apontando a seguir para o sítio para onde queria que se encaminhassem. "Ali à esquerda!"
Alguns aldeãos que percebiam português formaram logo uma segunda fila no local indicado e puseram-se a chamar outros que sabiam padecer do mesmo mal. Seguiu-se um burburinho e um movimento tumultuoso, mas depressa tudo acalmoy e culninou em duas filas de gente ao lado do avião.
"Esta é a malta da bilharziose", murmurou o médico para a freira. Indicou uma das caixas de medicamentos que havia pousado no capim. "Ó Lúcia, distribua-lhes Ambilbar e dê-lhes as instruções adequadas, está bem? Eu vou começar com o resto do pessoal. Quando acabarmos fazemos uma nova triagem para a doença do sono. A irmã distribui os medicamentos enquanto eu verifico os da tuberculose. Assim apressamos o serviço e partimos logo a seguir. Parece-lhe bem?"
A espanhola pegou na caixa de Ambilbar e dirigiu-se para a fila que acabara de se formar.
"Muy bien, doutor."
José voltou a sentar-se na abertura traseira do avião e ultimou os preparativos da tarefa que tinha pela frente. Depois levantou o olhar para a fila diante dele e fez sinal à mulher que se encontrava em primeiro lugar, com um bebé ao colo e duas meninas agarradas à capulana.
"Olá!", saudou-a. "Então o que se passa?"
Começara a maratona.
A vida de José Branco mudou radicalmente. O avião alargou- lhe a autonomia e os horizontes, mas também lhe trouxe novas responsabilidades e desafios. Embora acumulasse as funções de director do hospital de Tete, presidente da Cruz Vermelha da cidade e delegado de saúde, dando ainda assistência sanitária a várias instituições e organismos que operavam na capital distrital, as suas atenções passaram a centrar-se no Serviço Médico Aéreo, uma vez que era este serviço que lhe permitia estender a acção a todo o distrito e chegar a populações até aí ignoradas.
Todas as semanas o pequeno Piper Cherokee branco com a cruz vermelha nas asas e na cauda descolava do Aero-Clube de Tete pelas sete da manhã e voava para os mais diversos pontos do distrito, do Zobué ao Mazoi, passando por Fingué, Boroma, Chicoa, Chipera, Magoe, Furancungo, Vila Coutinho, Estima, Zumbo e outros destinos espalhados pela vasta savana da região. Até o Songo, onde se erguera entretanto uma vila para albergar o pessoal que estava a construir a grande barragem de Cabora Bassa, se tornou ponto de passagem obrigatório no itinerário semanal do minúsculo aparelho.
As paragens eram breves, um par de horas ou pouco mais antes de o avião descolar rumo ao destino seguinte onde nova multidão o aguardava. Com a rotina, todavia, José conseguiu desenvolver processos de triagem que lhe permitiram tratar com eficiência um grande número de pessoas.
"Bilharziose para a esquerda!", era uma frase que nele se tornou habitual. "Paludismo para a direita!"
Sabia por experiência que as doenças dominantes na região eram o paludismo, a bilharziose, a doença do sono, a tuberculose, a poliomielite e a varíola, e recorreu a técnicas específicas a cada problema para lidar com essas maleitas mais comuns. Nos primeiros tempos preocupou-se sobretudo com medicar os doentes, distribuindo por exemplo Resoquina a quem tinha paludismo e
Ambilhar às vítimas de bilharziose.
No segundo ano, contudo, começou a interrogar-se sobre a eficácia da sua acção.
"Ó Lúcia", disse no final de uma paragem em Vila Coutinho particularmente cansativa. "Assim não vamos lá!..."
"Ay, doutor! Porque diz isso?"
"Eles são sempre muitos! Já viu?"
"Es verdad" , assentiu ela. "Mas olhe para o lado positivo: já conseguimos curar muchos pacientes."
"Sim, mas o problema é que logo a seguir eles voltam com as mesmas doenças..." Revirou os olhos. "É exasperante!"
A pista era uma faixa cortada no capim, salpicada por estranhos pontos escuros. Olhando lá para baixo, José Branco apercebeu-se de que se tratava de gado a pastar e que teria de ser ele próprio a resolver o problema.
"Olhe para aquilo", disse à freira, apontando para os animais que lhe bloqueavam a aterragem.
"Isto não é um aeródromo, Lúcia. É um vacódromo."
Empurrou a manche e o avião picou sobre a pista. A terra cresceu depressa diante do cockpit e no último instante o médi- co-aviador endireitou o aparelho e fez uma razia ao descampado antes de voltar a ganhar altitude. Flectiu para a esquerda, de modo a posicionar-se de novo no enfiamento da faixa de verdura, e estudou os efeitos da sua manobra.
"Já está", constatou com um sorriso de satisfação ao ver o gado fugir. "Limpámos a pista!"
A aterragem dessa manhã em Chipera, minutos depois, foi o primeiro acto de um processo que iria culminar no final do dia na ideia que tudo mudou.
Como sucedia habitualmente quando dos seus périplos semanais, logo que estacionou o Piper Cherokee no aeródromo da povoação José estabeleceu o posto médico no próprio avião, fazendo da porta lateral do aparelho o seu gabinete de consulta. Acomodou-se aí e começou a atender os doentes que faziam fila à entrada da pista.