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O primeiro paciente era um homem já de idade, desdentado e com o corpo ligeiramente curvado, que se arrastou com uma certa dificuldade até junto do Piper Cherokee.

"Tem diarreia, doutor", disse o idoso, pousando a mão no estômago para reforçar a ideia. "Comi maningue maçanica."

Era um diagnóstico simples e de solução expedita.

"Então durante dois dias não vai tocar em fruta, ouviu?", recomendou o médico, estendendo o braço para uma caixa de medicamentos. "Come arroz e bebe maningue água fervida. A única fruta é banana." Entregou-lhe uma embalagem branca e azul a assinalar Ultralevur. "E toma este remédio."

O homem olhou para o médico e depois para a embalagem e de volta para o médico.

"Só isso?"

"Sim. Amanhã já está bom."

José lançou o olhar ao paciente seguinte, convidando-o a avançar, mas o homem que sofria de diarreia permaneceu plantado no mesmo sítio, no rosto uma expressão ao mesmo tempo decepcionada e desconfiada.

"Não tem mais?"

"Come arroz e banana, bebe maningue água fervida e toma esse medicamento", repetiu José cheio de paciência. "Amanhã já está bom."

"Não leva injecção?"

"Não é preciso", insistiu o médico, a tentar despachá-lo porque o tempo urgia; ainda mal começara e já o primeiro paciente o estava a atrasar. "O seguinte!"

O homem afastou-se com relutância, manifestamente pouco convencido com a receita que lhe fora passada. Acontece que o caso seguinte era o de uma mulher acompanhada de dois filhos com conjuntivite. O médico passou-lhe para as mãos os cremes adequados e mostrou-lhe como os deveria aplicar nas crianças, mas a mulher não lhe pareceu muito satisfeita e protestou num nhungué ruidoso enquanto apontava para uma seringa e indicava os braços das crianças.

"Não é preciso injecção!", garantiu José. "Os cremes chegam."

Desde que havia começado a trabalhar no hospital de Tete que estes episódios eram frequentes, mas nunca fizera caso deles. Dessa vez, contudo, achou de tal modo intrigante tanta insistência nas seringas que mencionou o assunto pouco depois, quando terminou as consultas e o chefe do posto administrativo de Chipera veio ter com ele à pista para se despedir.

"O doutor nunca havia reparado nisso?", riu-se o homem. "Eles adoram injecções! Na Metrópole ninguém sai contente de uma consulta se o médico não lhe passar uma receitazinha com uns medicamentos para aviar, não é verdade? Pois aqui são as injecções. Tratamento que não envolva picas não é tratamento para eles. Adoram injecções! Ui, isso é que é ser tratado!"

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As palavras do chefe do posto de Chipera acompanharam José Branco durante o resto do dia. O

que o homem dissera encaixava-se na perfeição na sua experiência de médico e director do hospital de Tete. A ideia começou assim a germinar-lhe na mente, seguindo um caminho lento mas seguro.

Se eles gostavam tanto de injecções, porque não tirar partido disso?

Na verdade, apercebeu-se com crescente entusiasmo, as peças encaixavam-se de modo inesperado, uma vez que os meios existiam e era seu dever fazer pleno uso deles. Quanto mais considerava o assunto, mais a ideia lhe parecia fazer sentido, até concluir que a única coisa realmente espantosa é que não tivesse pensado em tudo isso havia mais tempo. Como pudera ser tão distraído?

O que José precisava era de um plano estratégico de saúde e foi isso o que desenvolveu logo que no final desse dia chegou a Tete. Sentia-se de tal modo excitado que, em vez de ir para casa, correu directamente para o hospital. Fechou-se no gabinete, contemplou o mapa que mantinha pregado na parede e, de bloco de notas na mão, estimou a população do distrito e calculou a diferença entre as doses que possuía em stock e as necessárias para pôr em prática o plano.

Com as contas feitas, sentou-se à secretária diante de uma máquina de escrever e dactilografou uma carta. Depois assinou-a e meteu-a num envelope, que selou com uma lambidela rápida. Meteu a cabeça pela porta do gabinete e espreitou o corredor.

"Lúcia?!", chamou. "Pode vir aqui, por favor?"

A freira apareceu em poucos segundos.

"Que pasa, doutor?"

"Entrega-me esta carta ao Luís?", pediu, estendendo-lhe o sobrescrito. "Ele que a leve aos Correios. E urgente."

A espanhola pegou no envelope e espreitou a entidade rabiscada no lugar do destinatário. Era a Secretaria Provincial de Saúde e Assistência de Moçambique, sedeada em Lourenço Marques.

"St, doutor. Vou já hablar com ele."

"O Luís que tenha cuidado", aconselhou o médico. "Isso é maningue importante, ouviu?"

A recomendação foi feita como se o envelope contivesse ouro. Vendo o superior hierárquico rodear o sobrescrito de tantos cuidados, a irmã Lúcia estreitou os olhos e fez um ar entendido, quase cúmplice.

"Muy bien, doutor. Já vi que está a pedir mais dinero para o serviço. Bem que precisamos dele!..."

"Não é dinheiro nenhum, Lúcia", corrigiu o director do hospital, pegando na malinha e preparando-se para ir enfim para casa. "São vacinas. Muitas vacinas."

José Branco mostrava-se plenamente consciente de que sozinho não seria capaz de levar a cabo toda a campanha de vacinação que tinha em mente. O que faria quando chegassem milhares e milhares de vacinas? Passaria o dia num aeródromo perdido no meio do mato a inocular populações inteiras? Sozinho ou apenas com a ajuda da irmã Lúcia? Não era possível.

Passou por isso de imediato à segunda fase do programa que havia delineado. No planeamento da primeira viagem a fazer depois de ter escrito essa carta estabeleceu que iria a menos locais num único dia e gastaria mais tempo em cada um deles.

"Ai, doutor, no entiendo!", estranhou a irmã Lúcia quando estudou o plano de viagem. " Así não teremos modo de visitar todo o sítio..."

"Tenha calma, já vai perceber."

O primeiro poiso do périplo dessa semana foi o Mazoi. Depois de prestar a assistência habitual à população que enchia os acessos ao aeródromo à sua espera, José pegou numa caixa e dirigiu-se aos dois funcionários que operavam o posto administrativo local.

"Então, senhor doutor?", exclamou o chefe, um transmontano de meia-idade que se tinha amancebado com a fifha do régulo local. "Já vai andando, não é verdade?"

"Calma, que ainda há uma coisa que quero tratar convosco", disse. "Podemos ir ao posto?"

O pedido suscitou um esgar de surpresa dos dois homens, habituados a ver o médico aterrar, entregar-lhes o correio, tratar de umas centenas de pacientes e partir duas horas depois rumo ao destino seguinte. Era a primeira vez que o viam mostrar interesse em sair do aeródromo e ir ao posto.

"Porquê, senhor doutor? Passa-se alguma coisa?"

"Passa, pois. Vocês por acaso sabem dar vacinas?"

Os dois homens entreolharam-se, como se se interrogassem mutuamente.

"Quer dizer... não."

José ergueu a caixa, sugerindo que o seu conteúdo tinha a solução para o problema.

"Então vou ensinar-vos."

Pôs-se assim a dar formação aos funcionários que operavam os postos administrativos em cada terriola, mostrando-lhes como preparar as vacinas e inoculá-las nas pessoas.

Quando chegaram enfim de Lourenço Marques milhares de doses, a formação estava já completa e encontrava-se tudo pronto para a campanha. O médico não perdeu mais tempo. Meteu as caixas de vacinas no avião e distribuiu-as por todos os postos para onde voou nas duas semanas seguintes.