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A campanha começou em força pelo distrito inteiro. O ponto de arranque foi o Furancungo. O

médico deixou as caixas no posto local e, após dar as últimas instruções, seguiu de imediato para Vila Coutinho, depois para o Zobué e assim sucessivamente até percorrer numa semana todos os pontos do itinerário do Serviço Médico Aéreo, por toda a parte a distribuir correio e a espalhar caixas com doses de vacinas.

Quando na segunda-feira seguinte voltaram pela primeira vez ao Furancungo, primeira etapa do périplo semanal, José e a irmã Lúcia estranharam ninguém ter comparecido no aeródromo para ser tratado. Isso contrariava tudo o que havia acontecido nas viagens mais recentes.

"Passar-se-á alguma coisa?", admirou-se o médico num tom fingidamente casual, esforçando-se por esconder a preocupação; aquilo não era normal. "Que estranho!..."

A freira encolheu os ombros.

"Pues, não sei!"

A situação deixou José estarrecido. Era verdade que já no passado lhe sucedera ser ignorado pela população, mas isso só tinha ocorrido no princípio, quando havia iniciado no ano anterior aquelas visitas no Piper Tripacer com Teixeira e as populações se mostravam desconfiadas. Desde que essa desconfiança fora ultrapassada, no entanto, cada visita era um dia de festa na terra. Assim sendo, como explicar que a sua chegada fosse tão ostensivamente ignorada?

Meteram a pé pela picada e caminharam até ao posto administrativo. Quando se aproximaram da lomba antes do posto ouviram um clamor que os intrigou. Apressaram o passo e, no momento em que atingiram o alto da lomba, depararam com uma multidão concentrada diante do posto administrativo; era uma enchente como nunca tinha sido vista naquela terra.

"Mas que raio!..."

Abriram caminho entre as pessoas e, no meio de um calor infernal e do fedor a suor, conseguiram penetrar no posto. Os populares faziam fila da porta até duas cadeiras onde vários funcionários administrativos as inoculavam com surpreendente presteza, os movimentos já automatizados. O paciente mostrava o braço, o funcionário limpava-lhe o ombro com algodão e álcool, espetava-lhe a seringa, injectava a vacina, tirava a seringa, colava-lhe o algodão à pele e, sem levantar os olhos e já a preparar outra seringa, chamava:

"O seguinte!"

Desconcertados, os dois recém-chegados saíram do edifício sem assinalar a sua presença e voltaram à lomba da estrada, de onde contemplaram o espectáculo da multidão que se comprimia para entrar no posto administrativo. José estava boquiaberto e pelo rosto da irmã Lúcia serpenteavam grossas lágrimas. Ambos viam e quase não acreditavam.

Apesar da comoção que a sufocava, foi a espanhola a única que conseguiu falar.

"Esta campana es um milagre!"Os rapazes alinhavam-se no pavilhão em filas sucessivas e o espectáculo não era bonito de se ver. Havia algo de profundamente inestético na imagem de um macho nu e Diogo não conseguia sequer decidir-se sobre o que achava mais feio: se ver um homem despido de frente, com o emaranhado peludo de onde pendia um apêndice mirrado, se observá-lo de costas e ter de suportar as nádegas felpudas e borbulhentas, os quadris quadrados e as pernas desengonçadas. Que contraste com os corpos harmoniosamente ondulados e lácteos da Guidinha tetalhuda ou da Laura da boca marota!

"Diogo Meireles!", chamou a voz do militar.

Imitando o procedimento que observara nos casos anteriores, correu para a frente e plantou-se em sentido diante do homem que o chamara.

"Presente, meu sargento!"

O militar ficou um momento a verificar a lista que tinha nas mãos, mas acabou por levantar o olhar e pousá-lo entre as pernas do mancebo."Isso é pila que se apresente?", perguntou com um semblante sisudo.

Quando aguardava a sua vez, Diogo já o ouvira tecer comentários jocosos a propósito de outros mancebos, pelo que ignorou a pergunta e manteve-se calado.

"Vinte flexões!"

Atirou-se ao chão e em menos de quinze segundos completou as flexões com grande rigor, o corpo devidamente esticado, os braços a subir e descer como molas hidráulicas. Depois levantou-se e pôs-se de novo em sentido, arrancando uma expressão interrogativa ao sargento.

"Cinquenta abdominais!"

Dessa feita deitou-se de costas e, o corpo distendido, ergueu as pernas alto e baixou-as sem tocar no soalho, erguendo-as de novo e baixando-as sempre em ritmo acelerado e com os dois dedos grandes colados um ao outro numa simetria perfeita. Levou menos de dois minutos a completar o exercício e a erguer- se de novo, a respiração inalterada, o corpo hirto.

"Eh, pá!", observou o sargento, impressionado. "Acho que temos aqui o Super-Homem. Siga!"

Fez um gesto a indicar dois médicos de bata branca numa secretária e a atenção regressou à lista que tinha em mãos para identificar o nome seguinte.

"José Paulo Cardoso!"

Diogo foi ter com um dos médicos, que o examinou da cabeça aos pés e lhe auscultou o coração e registou a pressão arterial. Depois tirou-lhe sangue e entregou-lhe um pequeno frasco de plástico para as mãos, com a recomendação de que urinasse nele.

O procedimento foi relativamente simples e completou nessa manhã a inspecção sanitária na junta de recrutamento. Umas semanas depois apareceu-lhe em casa um novo envelope das Forças Armadas, que abriu diante dos pais.

"Então?", quis saber a mãe, dedilhando nervosamente o avental. "O que dizem eles?"

Diogo respirou fundo, consciente de que aquele ofício mudaria a sua vida.

"Deram-me como apto."

O curso de miliciano foi tirado no quartel das Caldas da Rainha. Tudo se alterara de repente na existência de Diogo. Teve de sair de casa e abandonar o liceu, embora o facto de o mesmo estar a acontecer a outros colegas o levasse a encarar essa mudança com uma certa naturalidade, se não mesmo fatalismo.

Mas se houve um choque provocado pelo desenraizamento, o mesmo não se pode dizer das exigências físicas da instrução militar. Para um atleta de alta competição como Diogo, a ginástica e todos os exercícios envolvendo o corpo, penosos para os restantes mancebos, eram embaraçosamente fáceis. De novo o curso apenas lhe deu a formação teórica e noções sobre o Regulamento de Disciplina Militar.

Apesar da incorporação no serviço militar e de todas as mudanças que isso acarretou, o novo recruta manteve-se como jogador do FC Porto e da selecção. Enquanto os jogos se limitaram às competições internas, como os campeonatos regional e nacional ou a Taça de Portugal, foi fácil obter dispensa das autoridades militares.

O problema surgiu no dia em que se apresentou perante o comandante com um pedido diferente.

"O Porto tem uma deslocação ao estrangeiro, meu coronel", anunciou com o corpo muito hirto no gabinete do comandante. "Solicito autorização."

O superior hierárquico arregalou os olhos.

"Ao estrangeiro?"

"Sim, meu coronel."

"Ó diacho!", exclamou o comandante, coçando a cabeça. "Contra quem?"

"O Olimpiakos do Pireu, meu coronel. É a primeira eliminatória da Taça dos Campeões Europeus e a primeira mão está marcada para Apenas daqui a quinze dias."

O comandante recostou-se no assento, ponderando as implicações daquele pedido.

"Bem, se fosse na União Soviética ou num desses países comunistas, não tinhas a mínima hipótese", começou por dizer. "Mas sendo na Grécia... enfim, vou pensar nisso."

A hesitação do comandante surpreendeu Diogo. Como atleta de alta competição habituara-se a gozar de um estatuto especial no quartel e jamais uma solicitação de dispensa por razões desportivas lhe havia sido negada. O que tinha aquela de diferente? Uma avalancha de interrogações perpassou-lhe pela mente, mas manteve-se silencioso; sabia que não podia questionar o superior hierárquico, embora ao mesmo tempo não conseguisse entender as dúvidas que ele dava sinais de alimentar.