O comandante apercebeu-se da perplexidade do recruta e ponderou mandá-lo embora sem quaisquer explicações, mas acabou por condescender.
"Estas deslocações ao estrangeiro são sempre um problema", suspirou. "Aqui há uns tempos houve uma situação semelhante devido a um jogo em Paris. A autorização foi concedida e o filho da puta, quando se apanhou em França, desertou. Estás a ver o engulho, não estás?"
A observação quase indignou Diogo.
"Nunca me passaria pela cabeça fugir, meu coronel", exclamou com intensa convicção. "Na minha família a palavra tem força de lei. Se me conceder a autorização, eu vou a Atenas, jogo e volto com a equipa. Isso nem tem discussão!"
O comandante afagou o queixo enquanto avaliava o recruta.
"Voltas, dizes tu?"
"Pode estar seguro, meu coronel."
"Olha que não quero cá chatices, ouviste? Vinte por cento dos mancebos fogem à tropa. Esses cabrões saem do país ou entram no que chamam a «clandestinidade». Tens consciência de que é um risco deixar-te ir, não tens?"
"Deixe-me e não se arrependerá."
A autorização foi dada dois dias depois e Diogo seguiu para Atenas com a equipa. Regressou na semana seguinte e apresentou-se no gabinete do comandante com uma pequena ânfora que comprara numa loja perto do Parthenon, antiguidade decerto feita na hora.
"É para si."O habitual almoço dominical na casa do director do hospital, na colina sobranceira ao Zambeze, teve nesse dia como convidados o comandante da PSP e a mulher. A vida em Tete era relativamente monótona. Não havia grande coisa para fazer a não ser trabalhar, dormir a sesta para fugir ao calor da tarde e organizar umas patuscadas com os amigos, modo de vida em que o casal Branco se integrou.
A ementa do almoço nesse dia era cabrito assado, mas António Trovão viera da Beira com novidades explosivas. Tinha ido participar num encontro provincial da PSP e os comandantes da polícia no Niassa e em Cabo Delgado haviam aparecido na reunião com notícias sensacionais.
"O Kaúlza tomou posse em Março e já se pôs a inventar", revelou Trovão perante a curiosidade dos seus anfitriões. "Lançou uma operação à americana lá em Cabo Delgado e deu-lhe um nome todo pomposo. Nó Gordio, vejam só. O tipo acredita que vai mesmo desatar o nó górdio da guerra."
O assunto acabou rapidamente por tomar conta da conversa à mesa."Isso é o que eles dizem sempre", observou José num tom céptico. "Ainda no ano passado ouvi o inspector Silva garantir que a guerra estava quase ganha e ela ainda aí anda."
"Iá, mas dá a impressão que agora é mesmo a sério", insistiu o amigo. "Os gajos fizeram uma limpeza geral ao longo de toda a fronteira com a Tanzânia. Disseram-me que o Kaúlza deitou mão aos grandes meios, com operações de searcb and destroy e outros palavrões que ele aprendeu lá com os camones. Parece que a coisa mete helicópteros, aviões, napalm, desfolhantes, carros blindados, milhares de magalas, vários grupos de comandos, pára-quedistas... eu sei lá!" Riu-se. "O
tipo julga que está no Vietname!"
"E essa operação, como está a correr?", quis saber José, que de guerras não percebia grande coisa a não ser os feridos que via chegarem-lhe ao hospital. "Obteve alguns resultados?"
O comandante da PSP fez um trejeito condescendente com a boca.
"Parece que sim", admitiu. "Dizem-me que os turras estão mesmo em debandada para a Tanzânia. Mas não tenho a certeza de que isso signifique o fim da guerra. O Kaúlza mandou queimar aldeias onde estavam os turras e lançou napalm e desfolhantes nas machambas para lhes negar os meios de subsistência. O gajo deve achar que vence a guerra se matar toda a gente, mas não me cheira que um conflito desta natureza se possa ganhar assim."
O diálogo à mesa, como tantas vezes sucedia, derivou para opiniões sobre como estavam as coisas a decorrer. Aproveitando uma pausa na conversa, cujos pormenores sangrentos lhe desagradavam, Mímicas deu um salto à cozinha e reapareceu instantes depois com uma travessa coberta por um doce amarelo- -torrado que todos reconheceram.
"Quem quer coisar um pudim Araújo?"
Foi um fecho de almoço em verdadeira apoteose. O pudim Araújo era a sua especialidade mais gabada. Tratava-se de um doce espumoso, feito de claras batidas com açúcar derretido; o sabor a nozes estava igualmente muito presente e compensava a doçura do caramelo. O assalto ao Araújo foi imediato e em dois minutos a travessa ficou vazia, apenas com um fio dourado de caramelo líquido a boiar nas bordas.
"Ai, comi de mais!", queixou-se Mímicas ao encarar o prato sujo que tinha diante dela. "Estou tão arrependida!..."
Depois de observar que já chegava de falar na "porcaria da guerra", José sentou-se ao piano e, com um copo de whisky com soda pousado junto ao teclado, pôs-se a dedilhar um dos seus temas favoritos, a música do filme Limelight, a velha fita que todos em Portugal conheciam como Luzes da Ribalta.
"Tararararãã... dez mil camisas!", entoou ao ritmo da melodia, o que divertiu os Trovão.
Um súbito zumbido entrou pela casa, primeiro distante, depois enervante e persistente. Todos reconheceram o som de um helicóptero, mas como se tratava de um ruído familiar para quem vivia junto ao hospital não fizeram caso e o anfitrião prosseguiu com a sua interpretação do tema musical do filme de Charles Chaplin.
O problema é que, logo que o primeiro zunir se afastou, indício seguro de que o helicóptero levantara voo, uma nova zoada se fez ouvir, indicando um segundo aparelho em aproximação, e a este seguiu-se um terceiro. Isso, sabiam todos, já não era normal. Como os zumbidos pareciam incessantes, os dedos de José imobilizaram-se no teclado, impondo assim um silêncio súbito na sala. O médico trocou um olhar intrigado com os convidados.
"Que raio!..."
A atenção de António Trovão, o comandante da PSP, estava havia algum tempo já fixada naquele som.
"Passa-se qualquer coisa."
Saíram para o jardim e voltaram os olhos para o espaço da colina diante do hospital, a uns duzentos metros de distância. Viram então os Alouettes alinhados no ar, como se estivessem envolvidos numa ponte aérea ou a fazer um exercício de grandes dimensões. Como gafanhotos gigantes, os aparelhos arredondados giravam sobre o Zambeze e, à vez, faziam-se à pequena pista circular que havia sido construída em pleno coração do hospital.
"Parece grave", observou Mimicas, a mão na boca. "Que terá acontecido?"
Dali era impossível obter respostas, mas o médico apenas precisou de alguns segundos para tomar uma decisão.
"Desculpem", disse, voltando-se para os convidados. "Tenho de ir ver o que se passa."
Regressaram para dentro de casa. O comandante Trovão agarrou-se ao telefone para ligar para o quartel e pedir informações e José foi ao quarto buscar a sua malinha de médico. Pôs o estetoscópio ao pescoço como se fosse um colar e, com um derradeiro aceno de despedida dos convidados, meteu-se no automóvel. O movimento de Alouettes não dava sinais de abrandar, era ainda um vaivém contínuo, e nesse instante teve a certeza de que o esperava uma tarde intensa.