Выбрать главу

A confusão no hospital era indescritível. Havia gritos, gemidos e manchas de sangue espalhadas pelo chão e pelas paredes, como nos talhos. Os feridos eram depositados nos corredores ou encaminhados para a sala de operações. O director inspeccionava os corpos, alguns terrivelmente mutilados. Percebeu pelo tipo de feridas que eram vítimas de explosões.

Os enfermeiros do hospital afadigavam-se em torno dos feridos e José foi ajudá-los a fazer pensos, preparar transfusões e meter tubos de soro. Alguns casos pareceram-lhe requerer amputação; hesitou, porém, antes de proceder ele mesmo à operação. O hospital tinha um cirurgião, mas não o via por ali.

"O Feitor?", perguntou à irmã Lúcia, que tinha a bata salpicada de sangue. "Onde está ele?"

"Não sei, doutor. É domingo, verdad? Entonces o doutor Feitor está de folga."Olhou à sua volta na enfermaria e tentou localizar o cirurgião, mas apenas vislumbrou os enfermeiros e os feridos.

Espreitou pela janela e viu o motorista a ajudar o enfermeiro Mendonça a transportar uma maca.

"Luís!", chamou. "Vai procurar o doutor Feitor! Ele que venha o mais depressa possível!"

Observou o motorista a meter-se no carro e calculou que levaria uma boa meia hora até o cirurgião chegar. Olhou para o ferido mais grave e ponderou o que fazer. Apesar de lhe ejtar a ser aplicada uma transfusão, a condição do homem tornava urgente a operação. Tinha a perna empapada de sangue; teria de ser decepada o mais depressa possível. Avistou um enfermeiro militar que viera num Alouette e fez-lhe sinal com a cabeça.

"Meta-me este ferido na sala de operações", ordenou. "Vou ter de o amputar."

O rosto transpirado do enfermeiro carregava-se de sulcos de fadiga, mas o olhar pareceu acender-se quando deu com o médico.

"Sim, doutor."

O enfermeiro pegou na maca com o ferido e assentou-a num carrinho, que começou a empurrar em direcção à sala de operações. José apressou o passo e caminhou ao lado da maca.

"O que aconteceu?"

"Uma emboscada", disse o enfermeiro. "Veio uma carga crítica para a barragem e a tropa estava a fazer-lhe a escolta desde a Rodésia. Já perto do Songo a rapaziada achou que o perigo tinha passado e facilitou nas medidas de segurança. Puseram-se todos na brincadeira. Correu mal... Os turras estavam emboscados e mandaram uma bazucada que atingiu a carga crítica em cheio." O

enfermeiro respirou fundo. "Parecia um terramoto, doutor, havia de ter visto. Quando chegámos ao local estava tudo em fanicos. Morreram pelo menos dez homens e temos uns quarenta feridos. O

doutor Coutinho ficou no Songo a tratar os casos mais graves, aqueles que não tinham condições para viajar, e mandou trazer estes aqui para Tete."

Viraram numa porta a meio do corredor e entraram na sala de operações. O ambiente estava climatizado e o ronronar suave do ar condicionado quase tornava a sala agradável. O ferido foi depositado na mesa que ocupava o centro da sala e o médico foi lavar as mãos. A irmã Lúcia apareceu entretanto com os instrumentos e pôs-se a esterilizá-los, enquanto o enfermeiro militar dava uma anestesia ao ferido. José atou a máscara ao rosto, calçou as luvas, pôs a touca e começou a inspeccionar a ferida, tentando decidir por onde proceder ao corte. Pareceu-lhe que o mais seguro seria amputar por cima do joelho.

A irmã Lúcia aproximou-se da mesa e estendeu-lhe a serra. O médico contemplou uma última vez a perna do ferido, como se quisesse certificar-se de que não havia mesmo alternativa, e suspirou com resignação.

"Vamos a isto."

Pegou na serra e fez sinal ao enfermeiro militar de que segurasse a perna com força, de modo a facilitar a amputação, mas quando ele próprio agarrou a coxa do ferido e assentou o instrumento para começar a serrar a carne e o osso sentiu uma mão travar-lhe o braço.

"Você é cirurgião?"

Olhou para trás e, apesar da bata, da touca no cabelo e do pano que ela trazia no rosto, reconheceu a figura da médica.

"Nicole!", exclamou, surpreendido. "O que está aqui a fazer?"

"Estou indo para o Songo e vim dar uma mãozinha para tratar dos feridos", disse ela, desviando o olhar para o paciente sobre a mesa de cirurgia. "Estou vendo que vai operar. Você é cirurgião?"

"Bem... não, mas o nosso cirurgião ainda não chegou e este caso é urgente. Vamos ter de amputar depressa."

Nicole inclinou o tronco para a frente e espreitou a ferida de perto, avaliando o caso.

"Estou vendo", murmurou, como se aprovasse o diagnóstico. "Você costuma fazer amputações?"

"Já fiz algumas, claro. Aqui em África temos de ser polivalentes, não é? Mas confesso que a minha especialidade não é esta..."

Com um movimento suave, Nicole arrancou-lhe a serra das mãos e ocupou-lhe o lugar.

"Mas a minha é", disse no tom de quem nem admite discutir o assunto. "Deixa para lá que eu faço isso, tá? Você vá tratar dos outros feridos."

Como previra ao sair de casa, essa tarde no hospital revelou- se particularmente difícil. O

doutor Feitor aparecera entretanto e ajudara Nicole na cirurgia, enquanto José e as enfermeiras se concentravam nos paliativos e nos casos que não requeriam amputação. Tiveram também a ajuda do doutor Arroz, que estava de passagem por Tete a caminho do Zobué.

Ao cair da noite, o director recolheu-se ao gabinete com a irmã Lúcia para prepararem o dia seguinte. As cirurgias tinham terminado e a situação parecia controlada, com os feridos a convalescerem nas enfermarias. José distribuiu as tarefas de modo a ter em conta as necessidades do hospital e também do Serviço Médico Aéreo, que, como era hábito, ia partir em missão na madrugada seguinte, mas a freira não aprovou a planificação.

"Yo não posso ir esta semana", disse a irmã Lúcia, abanando enfaticamente a cabeça. "Nz hablar!

mucho trabajo para hacer! O doutor vá sozinho!..."

O director endireitou-se na cadeira

"Que é isso, Lúcia? O doutor Feitor está cá, ainda vão chegar os médicos militares para acompanhar os feridos e além disso temos o resto do pessoal. Dá perfeitamente para fazermos o serviço aéreo."

"Tenemos médicos suficientes", admitiu a freira, " pero não enfermeiros. Yo fico cá. O doutor vá sozinho."

"Sozinho? Sozinho como? Isso não é possível, mulher! Preciso de ajuda para fazer o serviço.

Onde já se viu uma única pessoa tratar da saúde de toda a população do distrito?"

"Tiene os enfermeiros que o senor colocou nos postos administrativos."

"Ó Lúcia, sabe muito bem que a preparação deles é demasiado rudimentar."

A freira manteve o olhar fixo no seu superior hierárquico, percebendo o problema e ponderando o que fazer.

"Tiene razão, doutor", concedeu, sentindo-se dividida perante os seus deveres. " Pero aqui também há mucbo trabajol... Como vamos hacer isto?"

"Cada um tem de dar o máximo, é a única maneira", disse José. "Lembre-se de que estes feridos ainda têm aqui o doutor Feitor e o resto dos enfermeiros para tratar deles, mas quem trata da população? Ninguém. Eu sozinho não dou conta do recado, como a irmã muito bem sabe. Preciso da ajuda de pelo menos mais uma pessoa qualificada. Se a Lúcia não vier comigo, quem vai?"

A espanhola baixou a cabeça, à beira da derrota.

verdad, doutor", reconheceu. "O problema é que o serviço é muy grande e tenemos pouco pessoal. Se ao menos fuese possível mandar vir de Louren..."