Uma Kalashnikov.
O grupo imobilizou-se no lugar onde se encontrava, paralisado de medo. José olhou para os funcionários do posto administrativo em busca de informação, mas estes pareciam tão surpreendidos como ele. Nicole, que já tinha percebido o que se passava, encolheu-se atrás dos funcionários, como se tentasse fundir-se com a terra e desaparecer.
O médico virou-se para o homem armado.
"O que deseja?"
"Precisamos da sua ajuda", disse o desconhecido, fazendo sinal com a cabeça para um trilho aberto na cortina de capim, a indicar assim a direcção que deviam tomar. "Faça o favor de me acompanhar."
José pegou na mala e, sem hesitar, começou a andar na direcção apontada pelo homem.
"Doutor", chamou o chefe do posto administrativo. "Não vá!"
Sem parar, o médico virou a cabeça para trás e depois pousou os olhos na Kalashnikov que balouçava na mão do guerrilheiro; a arma não estava numa posição ameaçadora, mas nem isso parecia necessário porque a sua simples presença era ameaça suficiente.
"Não me parece que tenha alternativas pois não?"O trilho aberto no capim prolongou-se talvez uns dois quilómetros. Logo à saída de Cazula um punhado de homens armados e também vestidos de caqui, embora algo esfarrapados, juntou-se ao médico e ao guerrilheiro barbudo. O grupo percorreu o trilho em fila indiana e em silêncio, o barbudo à frente a indicar o caminho, José logo a seguir, os restantes atrás.
O médico sentia-se nervoso e o coração batia-lhe a um ritmo acelerado, mas tentava ocultar o medo que lhe transformava as pernas em gelatina. É verdade que não era a primeira vez que lidava com guerrilheiros; acontecia-lhe com frequência encontrar feridos em aldeias que, embora não o confessassem, eram evidentemente elementos do inimigo. Tratara-os a todos, mas aquela que era a primeira vez que o raptavam e interrogava-se sobre o destino que lhe iriam dar. Decerto não o levaram para o matar, tentou convencer-se, meio esperançado, meio ansioso. Se o quisessem fazer não lhe falariam naquele tom cortês; além do mais, já o teriam abatido. Mas se não planeavam matá-lo que lhe queriam eles?A caminhada terminou numa clareira rodeada de palhotas. O
guerrilheiro barbudo conduziu o médico para uma delas e fez-lhe sinal de que entrasse. José tirou o chapéu rodesiano da cabeça, curvou-se e cruzou a entrada escura. A cubata estava fresca e um forte odor a suor e urina impregnava o ar. Apercebeu-se de um vulto deitado numa esteira, mas levou alguns instantes a habituar-se à escuridão e a destrinçar as formas com clareza.
Era um ferido. O olhar do médico foi atraído para a coxa do homem, envolvida em ligaduras ensanguentadas. Sabia que teria de ver isso com cuidado. Desviou a atenção para a face do ferido.
Tinha os olhos fechados e a testa banhada de gotículas de transpiração; a respiração era irregular e o homem parecia mergulhado num sono agitado. José pousou-lhe a mão na testa e sentiu-lhe a temperatura; estava quente, mas não a ferver.
"Então, doutor?"
O médico olhou para trás e viu o guerrilheiro barbudo inclinado sobre o seu ombro a espreitar o ferido.
"Tem febre, mas não me parece maningue alta", respondeu. "Vou ter de lhe ver a perna. O que aconteceu?"
O barbudo fez uma careta.
"Foram os comandos. Atacaram de surpresa e mataram-nos dois camaradas. Quatro ficaram feridos. Três já voltaram à Zâmbia, mas aqui o Ernesto, coitado, como foi atingido na perna, não conseguia andar. Tentámos tratá-lo, mas desconseguimos." Lançou uma espreitadela à porta da palhota, como se receasse a entrada de alguém. "Temos de ir embora, é maningue perigoso ficar aqui, mas não sabíamos o que fazer ao Ernesto. Aí vimos de repentemente o seu avião e pensámos: o doutor Branco já tratou guerrilheiros da Frelimo. Ele vai ajudar o pobre do Ernesto. E fomos buscá-lo." Endireitou o corpo, como se a missão estivesse enfim cumprida. "Agora vamos embora."
O médico olhou para as ligaduras ensanguentadas na perna do ferido e voltou-se de novo para o guerrilheiro barbudo.
"Vão-se embora, como? Que quer dizer com isso?"
"Não podemos ficar aqui, doutor." Indicou a luz que jorrava pela entrada da cubata. "O
guerrilheiro tem de estar sempre em movimento. Os comandos podem voltar, ainda por cima depois de termos ido lá buscar o doutor. Agora que o senhor aqui está, podemos partir."
"E quem fica com o ferido?"
"Fica o doutor."
José olhou de novo para o homem estendido na esteira e abanou a cabeça.
"Não, não pode ser assim", disse, enfático. "Ajudem-me a levá-lo até ao aeródromo. Temos de o meter no avião."
O guerrilheiro pareceu estupefacto com a sugestão.
"O avião, doutor?"
O médico indicou uma espuma amarelada na orla do sangue que sujava as ligaduras.
"Está a ver isto?", perguntou. "É pus. A ferida está infectada. Este homem tem de ser imediatamente transportado para o hospital. Não sei se vamos a tempo de lhe salvar a perna, mas quero pelo menos tentar." Fez um gesto a indicar a cubata. "Aqui é que ele não pode ficar."
"Mas nós não podemos ir até ao aeródromo, doutor. Isso vai dar maningue chatice."
José ponderou a observação.
"Então levem-no ao menos até à aldeia", sugeriu. "Depois eu trato do resto."
O guerrilheiro foi chamar os seus homens e o grupo improvisou uma maca, onde instalou o ferido. Minutos depois médico e guerrilheiros retomaram a picada de regresso a Cazula, com um batedor à frente. O sol ardia a pique e José ordenou que um dos homens fosse buscar folhas de palmeira e fizesse o caminho ao lado da maca, usando as folhas como guarda-sol para proteger o ferido.
Era uma estranha fila, com homens de caqui a transportar a maca e uma figura de branco a acompanhar o grupo, tão diferendado como uma pomba rodeada por um bando de corvos.
Daquele bando emergiu o guerrilheiro barbudo, que apressou o passo para se pôr ao lado do médico.
"O doutor também trata os comandos?", quis saber o guerrilheiro.
"As vezes", retorquiu José. "Trato de toda a gente que precisa de tratamento."
"Mas os comandos são animais", insistiu o guerrilheiro. "E os piores são os pretos. Três quartos dos comandos portugueses são homens negros. Essa gente é maningue má. Não presta." Inclinou a cabeça. "Estou a pedir não trata eles."
"Não trato de quem? Dos comandos negros?"
"Sim. Estou a pedir não trata eles."
O médico ajeitou o chapéu, inclinando a aba para melhor se proteger do sol. Sobre a linha do capim, onde o ar ondulava com o calor, já se avistavam os primeiros telhados de colmo das palhotas de Cazula, indício seguro de que a pequena aventura estava perto do fim.
"Você tem de perceber uma coisa", disse José com uma voz suave. "Eu sou um médico e tenho deveres. Traga-me aqui o assassino da minha mãe e eu cuidarei dele."
Aconteciam por vezes estes imprevistos que obrigavam a alterar a planificação das viagens semanais do Serviço Médico Aéreo. José Branco encontrava num local alguém a precisar de transferência imediata para um hospital e mudava o roteiro de voo. Em vez de seguir para o destino inicialmente previsto, voava até Tete para internar o paciente no hospital e só então retomava a viagem em direcção ao destino que ficara em suspenso.
Foi o que sucedeu dessa vez. Os guerrilheiros largaram o médico e a maca com o ferido na orla de Cazula. Já em liberdade, José foi chamar o pessoal do posto administrativo e pediu ajuda para transportar o guerrilheiro para o Piper Cherokee. Uma vez no avião, removeu duas cadeiras, de modo a abrir espaço na traseira do aparelho, e encaixou a maca com o ferido.