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"Quem é esse cara?", quis saber Nicole quando se acomodaram no cockpit, manifestamente nervosa com a presença daquele passageiro atrás dela. "é turra?"

O médico-aviador verificava o painel de bordo, mas não conseguiu conter uma gargalhada.

"Não te metas com ele", recomendou. "Olha que vai já desatar aos tiros."

A rodesiana cravou os olhos receosos no homem deitado na maca, observando-o com um fascínio atemorizado.

"My God! É terrorista!"

Imerso no painel de bordo, José terminou o check e iniciou os procedimentos para ligar o motor.

"Não", disse. "é um paciente."

De Cazula deveriam seguir para Bene e terminar o dia no Fingué, mas a presença do ferido, e sobretudo o estado em que ele se encontrava, obrigou o médico-aviador a alterar o plano de voo.

Logo que descolou, e em vez de prosseguir para noroeste, o avião completou uma larga curva no espaço vazio e rumou para sul, a caminho da capital distrital.

Apanharam pouco depois uma vasta faixa de água a cortar a savana; era o caudal majestoso do Zambeze que serpenteava na sua longa viagem do coração de África até às águas quentes e translúcidas do Índico. O Piper Cherokee baixou de altitude e José, preocupado em manter distraída a enervada rodesiana, mostrou-lhe as manadas de elefantes que brincavam nas margens do rio, ao pé de grupos de hipopótamos e de alguns antílopes; viam-se mesmo duas girafas e várias zebras.

"Estás a ver aquilo ali?", perguntou José, apontando para uns troncos que boiavam na água.

"São jacarés."

O Zambeze guiou-os até Tete, onde aterraram meia hora depois. O médico-aviador ligou do Aero-Clube para o hospital e pediu à irmã Lúcia que mandasse um jipe buscar o ferido, dando instruções de que ele fosse imediatamente visto pelo doutor Feitor.

Aguardaram junto ao paciente até a viatura chegar. Depois de o entregarem, José e Nicole meteram-se de novo no aparelho e retomaram viagem, sobrevoando mais uma vez o Zambeze por algum tempo, só que dessa vez em sentido contrário, e dirigindo- se enfim para Bene.A semana havia sido dura, como aliás sempre sucedia quando o trabalho do Serviço Médico Aéreo apertava, e José Branco ansiava por regressar a casa. Acossado pelos remorsos desencadeados com o retomar da ligação com Nicole, logo que no final da tarde de sexta-feira aterrou no Aero-Clube sentiu uma vontade quase incontrolável de correr para os braços da mulher. Sabia, contudo, que não o podia fazer imediatamente; tinha primeiro de ir ao hospital tratar da papelada que se acumulara na sua ausência.

Enquanto guiava pelas ruas poeirentas de Tete em direcção ao centro, o sentimento de culpa em relação a Mimicas adensou-se. A relação que durante esses últimos dias desenvolvera com a rodesiana tinha um cariz fortemente sexual, mas deixara-o vazio e com saudades da mulher. Como pudera traí-la daquela maneira? Sempre encarara o que havia acontecido dois anos antes no Hotel Cardoso como um acidente de percurso, um tropeção que o tempo tornara uma vaga lembrança, algo tão distante que quase não passava já de um sonho.

Mas desta vez tinha sido diferente. Traíra e voltara a trair a mulher. Fizera-o conscientemente, durante vários dias seguidos e mesmo ali no distrito de Tete, não na longínqua Lourenço Marques.

E o pior, o que realmente o perturbava, é que não se sentia com forças para cortar com Nicole. Era como se a mente lhe desse uma ordem e o corpo se recusasse a cumpri-la.

Porque o fazia? A novidade de experimentar uma estrangeira constituía sem dúvida parte da resposta. Mas havia mais, tinha de haver mais. Alguma coisa faltava na sua relação com a mulher e ele suspeitava que eram os filhos. Havia anos que mimicas tentava engravidar, mas nada sucedera ainda. Haveria algum problema com ela? Ou com ele? A verdade é que não tinha respostas para a situação.

Estacionou diante do hospital e, depois de lançar um olhar melancólico na direcção de casa, plantada orgulhosamente na berma da colina como um castelo sobranceiro à cidade, galgou as escadas e entrou no edifício.

Cumprimentou o porteiro e cruzou-se com a irmã Lúcia no corredor.

"Foi buena a viagem?", quis ela saber, mais por cortesia do que por curiosidade genuína.

"Normal", devolveu o médico com um gesto de indiferença. "Como vão as coisas por aqui?"

"O inspector Aniceto Silva telefonou a dicer que o doutor se deveria apresentar na PIDE logo que chegasse."

José estacou a meio caminho, intrigado com o recado.

"Está a falar a sério?"

"Sí, claro. Ele disse: imediatamente."

"Explicou porquê?"

A freira espanhola revirou os olhos, como se aquilo fosse um jogo e ela estivesse cansada de o jogar.

"No", suspirou. " Pero ele levou o guerrillero."

"Qual guerrilheiro? O que eu trouxe de Cazula?"

"Esse mismo. O doutor Feitor tratou-lhe da perna, não foi preciso amputar. Pero logo que melhorou, a PIDE veio buscá-lo."

A informação deixou o director do hospital chocado.

"Ah!", exclamou. "E como diabo soube a PIDE que o tipo estava aqui internado?"

Lúcia encolheu os ombros, num gesto de absoluta ignorância.

"No sé."

Não teve de esperar muito para ser recebido pelo inspector Aniceto Silva nas instalações da polícia de segurança do estado em Tete. Tratando-se do médico que dava assistência aos funcionários dessa polícia, José era bem conhecido por ali e foi acolhido com um copo fresco de capilé e encaminhado para o gabinete do chefe.

"Mandei que o chamassem porque temos aqui uma pequena chatice", disse o inspector em jeito de preâmbulo.

"O que foi?", quis saber o médico. "Não me diga que está preocupado com o novo treinador do Benfica..."

Era um truque simples, mas funcionava. Sempre que previa tensão com Aniceto Silva, puxava o clube à baila e a conversa amaciava um pouco.

"Isso é que não, doutor!", exclamou o inspector, sem conter um sorriso. "Tenho confiança neste Hagan que fomos buscar a Inglaterra. E um bife teso que nem um carapau. Com esse gajo ainda vamos voltar a conquistar a Europa, vai ver."

"Olhe que o Ajax anda forte. Ganhou a Taça dos Campeões e tem aquele Cruijf, dizem que é uma máquina a fintar!..."

"Ora essa! E nós temos o Eusébio! Esse é uma máquina a bujardar!"

"Pois, mas ele não dura para sempre..."

Aniceto Silva pareceu ficar pensativo, como se reflectisse no problema do envelhecimento do grande craque do Benfica. Indicou ao visitante que se sentasse no sofá e depois ele próprio acomodou-se no seu lugar habitual.

"Olhe, doutor, o que eu espero que não dure para sempre é o raio desta guerra", desabafou, mudando o ângulo da conversa. "E foi justamente por causa dela que o mandei chamar."

"Então? Que se passa?"

"Passa-se que me chegou aos ouvidos que o doutor teve um encontro com os turras e trouxe um deles para Tete. Não pense que não sei que o senhor já antes tratou alguma dessa rapaziada com quem se cruza por vezes lá no mato. Por mim, tudo maningue naice. Agora o que eu não estava à espera é que o doutor transportasse um turra na sua geringonça aqui para Tete e ainda por cima o internasse numa enfermaria do nosso hospital, numa cama onde a porra do turra tinha como vizinhos os nossos soldados! Um e outros lado a lado! Isso, doutor, é o cúmulo! Já só falta o senhor levar o turra para Lourenço Marques e...e pô-lo