numa suite do Polana, caraças! Onde é que já se viu isto?"
O tom em que as palavras foram pronunciadas foi em crescendo, com o inspector a ruborescer à medida que ia falando e a terminar quase aos berros, empolgado pela indignação que dele se ia apossando, cada frase a empolar a seguinte. Concluiu quase sem fôlego, como um tribuno eloquente mas já exangue, e quase esperou aplausos quando se calou e ficou a arfar. Fez-se um silêncio súbito e ambos permaneceram dois longos segundos a fitar-se.
"Já terminou?"
A pergunta do médico foi formulada numa voz tranquila, sem ponta de ironia, o registo quase neutro.
"Iá", assentiu Aniceto Silva, um tudo-nada ofegante. "Estou à espera de uma explicação sua."
"A explicação é a mesma que lhe tenho dado desde que nos conhecemos", disse José. "Eu sou médico e tenho um dever de neutralidade. Não lido com turras nem com tropa, não lido com pretos nem com brancos. Lido com pacientes. Se uma pessoa precisa de ajuda, cá estou eu. Não quero saber se é branco ou preto, não quero saber se..."
"Mas, ó doutor", interrompeu-o o inspector, num tom bem mais sereno do que aquele que usara no final da sua empolgada intervenção. "O senhor usou meios do estado para transportar um turra para Tete e meteu-o numa enfermaria ao lado dos nossos homens, se calhar alguns deles feridos por esse mesmo turra. Acha isso normal?"
"Eu não transportei um turra", argumentou o médico. "Eu transportei um ferido que precisava de assistência imediata. Não podia deixá-lo a morrer no meio do mato."
"Ele não morreria se não tivesse pegado em armas contra nós!..."
"Desculpe, inspector, mas isso não me diz respeito. Tudo o que sei é que tinha um ferido nas mãos e dispunha dos meios necessários para o salvar. Foi o que fiz, conforme é meu dever. E
quanto a tê-lo posto na enfermaria, fique a saber que não é a primeira vez que uma coisa dessas acontece."
"O quê?"
"É como lhe estou a dizer", insistiu José, quase satisfeito por dar ao chefe distrital da polícia de segurança do estado uma novidade e provar-lhe assim que ele afinal não sabia tudo sobre todos.
"Quantas vezes não apanhamos no mato homens feridos ou doentes? Acha que lhes pergunto se são turras? Não sei quem são, eles não andam com nenhum cartão a dizer 'turra', nem isso me interessa. Se precisam de ajuda, eu dou-lha. Estamos fartos de internar no hospital gente assim, o que pensa o senhor? E todos eles vão para a enfermaria dos homens e são instalados nas camas vagas, independentemente de quem esteja ao lado, seja ou não soldado. E, para que conste, nunca ocorreu nenhum incidente entre eles. No hospital não há tropa nem turras nem inimigos. Há gente."
O inspector Aniceto Silva respirou fundo, avaliando o problema. Sentia-se tentado a resolver a questão à bruta, sempre seria mais simples e expedito, mas sabia que não podia fazê-lo. Havia falta de médicos no distrito, pelo que tocar num deles iria gerar dificuldades. E logo aquele médico.
Além de director do hospital, presidente da Cruz Vermelha de Tete e delegado de saúde, José Branco era o director do Serviço Médico Aéreo, levando a cabo uma missão que Lourenço Marques considerava de importância estratégica. Não podia atacar frontalmente um homem daqueles por causa de uma questão que, embora sem dúvida relevante em matéria de princípio, era na verdade de menor importância. O melhor mesmo, decidiu, seria explicar-lhe as coisas e tentar injectar algum bom senso naquela cabeça de casmurro.
Recostou-se na poltrona e respirou fundo, avaliando o que poderia ou não revelar.
"Ó doutor, compreenda uma coisa", disse devagar, como se pesasse as palavras. "As coisas mudaram muito desde que a subversão começou. É natural, estamos em 1970 e já passaram seis anos desde o início desta chatice, não é verdade? Do nosso lado morreu Salazar e o presidente do Conselho é o professor Marcello Caetano. Do lado deles morreu o Mondlane e quem manda agora é um gajo chamado Machel."
"ó inspector, tudo isso já eu sei", atalhou o médico. "Onde quer o senhor chegar?"
"Estou a tentar explicar-lhe que, como é inevitável, chefes novos trouxeram ideias novas. Até os nomes mudaram, caraças!" Bateu no peito. "Olhe para nós: antigamente éramos a PIDE, agora resolveram chamar-nos DGS. Está a ver?"
José não conteve um sorriso.
"Desculpe lá, inspector, mas DGS parece nome de um modelo de automóvel." Fez um gesto no ar, como se imaginasse uma placa invisível. " Renault DGS!" Abanou a cabeça. "Acho que toda a gente vai continuar a chamar-vos PIDE..."
"Que era o que me apetecia também fazer, mas não posso", desabafou Aniceto Silva. "Decidiram chamar-nos Direcção-Geral de Segurança e temos é que respeitar. Manda quem pode, obedece quem deve, já dizia Salazar. Mas nada disso interessa. O que importa é que, se as mudanças começam pelos nomes, imagine como não será com tácticas e estratégias e tudo o mais. Como calculará, estas coisas congeminadas em gabinetes confortáveis estão a ter efeitos práticos no terreno." Bateu com o indicador na mesinha diante da poltrona, como se ela fosse "o terreno". "O
nosso novo presidente do Conselho mandou para cá o general Kaúlza de Arriaga, que tem umas ideias um bocado americanadas. Por causa delas, a guerra aqui em Moçambique está a entrar numa nova fase e..."
"Está a falar daquela grande operação que o Kaúlza lançou lá em Cabo Delgado?"
O inspector da DGS tentou dissimular a surpresa, mas um pestanejar de olhos irrefreável traiu-o.
"Ai o doutor já sabia? Quem lhe contou?"
Na face de José desenhou-se um sorriso reservado, como de um jogador de póquer a esconder as cartas.
"Digamos que tenho as minhas fontes..."
"E o que lhe disseram as suas fontes?"
"Que se tratou de uma operação à americana, envolvendo grandes meios, e que resultou num sucesso." O médico soergueu o sobrolho, como se buscasse cumplicidade. "Confirma, não é verdade?"
Aniceto Silva esboçou um esgar, parecia até que tinha acabado de descobrir uma coisa desagradável na sua poltrona, quem sabe se um alfinete apontado para cima.
"Depende do que se entende por sucesso", observou com secura. "A operação foi lançada para expulsar os turras de Cabo Delgado e do Niassa. Nesse particular, acho que sim, pode dizer-se que foi um sucesso." Afinou a voz. "O problema é que este sucesso teve um efeito imprevisto e que, receio bem, nos esteja a atingir em cheio." Fez um gesto a indicar o gabinete em redor. "Quando eu digo 'nos esteja a atingir' estou a referir-me a nós, aqui em Tete."
"A nós?", admirou-se José. "Que quer dizer com isso?"
"Quero dizer que os turras se estão a transferir de armas e bagagens para o nosso distrito, doutor." Arregalou os olhos, de modo a enfatizar a ideia. "De armas e bagagens."
"Está a falar a sério?"
O homem da DGS retirou um maço de LM do bolso da camisa e extraiu um cigarro, que acendeu com o isqueiro.
"Infelizmente, sim", confirmou após largar a primeira baforada. "Há dois anos que os turras elegeram Cabora Bassa como o seu alvo prioritário, como sabe, mas isso na altura não passou de mera conversa. Os tipos continuavam concentrados lá em Cabo Delgado e no Niassa, junto à Tanzânia, e não conseguiam descer porque, explorando as rivalidades étnicas com os macondes, pusemos os macuas do nosso lado. Depois veio esta Operação Nó Gordio, que os obrigou a recuar, e neste momento está já a ser aplicada a Operação Fronteira, que se destina a interditar a passagem de turras provenientes da Tanzânia. Isto deixou-os perante um problema, como deve calcular. Que fazer? Deveriam tentar entrar de novo em força num território que nós tornámos inabitável? Ou deveriam permanecer na Tanzânia, aceitando assim implicitamente a derrota militar? Encostados à parede, os tipos optaram por uma terceira solução. Mudaram o teatro de operações e vieram aqui para Tete. Quem é que se lixa?" Encostou o polegar ao peito, como se fosse ele a vítima. "Somos nós! Se até agora a coisa neste distrito estava relativamente calma e os turras se limitavam a acções de propaganda junto da população e a um ou outro ataque ocasional, agora passaram mesmo à ofensiva." Nova baforada. "O doutor não tem reparado no aumento de incidentes?"