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José balançou afirmativamente a cabeça.

"De facto", confirmou. "Aliás, quando aterrei em Cazula a pista estava minada e o homem que trouxe para Tete era justamente um ferido de combate. Coisas destas estão agora a acontecer-me com frequência crescente."

Aniceto Silva aspirou o cigarro e ficou a contemplar a névoa acinzentada que revoluteava para cima, numa estranha dança em espiral lenta.

"O problema", murmurou pensativamente, "é que eles nos surpreenderam de calças na mão."

"Que quer dizer com isso?"

"Apanharam-nos desprevenidos. Há seis anos, quando os gajos atacaram em Cabo Delgado, nós já tínhamos tomado as nossas precauções. Mas desta vez não. Tete está desguarnecida."

"O Kaúlza não vai enviar tropas para cá?"

"Claro que sim", assentiu o inspector. "Mas quando eu falo em precauções não estou a falar em termos puramente militares. Era preciso termos aldeamentos já preparados para meter lá a população e assim dificultar a infiltração subversiva. Era preciso trabalhar os grupos étnicos para explorar as divergências entre eles e minar assim o apoio dos indígenas aos turras. Ficámos a dormir e nada disso foi feito. Agora receio que já seja tarde."

"Mas o engenheiro Pontes disse-me há uns tempos que a Missão de Fomento anda a fazer esses aldeamentos e que..."

"GPZ."

"Como?"

"Também a Missão de Fomento mudou de nome, doutor. Chama-se agora Gabinete de Planeamento do Zambeze, ou GPZ."

O médico revirou os olhos, sem perceber porque havia sido interrompido por causa de uma minudência daquelas. Sabia muito bem que o organismo se chamava GPZ, mas habituara-se ao nome antigo e esses hábitos tendem a perdurar.

"O que seja. O facto é que eles já estão a construir os aldeamentos e a meter gente lá dentro."

Baixou a voz. "Parece até que, em muitos casos, contra a vontade das pessoas."

O inspector espreitou o relógio e esmagou o cigarro na mesinha diante dele.

"Oiça, doutor, estive a contar-lhe isto para que o senhor perceba que as coisas vão mudar aqui em Tete e que é preciso muito bom senso", disse em jeito de quem quer apressar a conversa. "Tudo o que lhe peço é bom senso. Não estou a pedir muito, pois não? Ajudar um turra, como o senhor fez, é ajudar o inimigo. Não sei se isso será a coisa mais inteligente a fazer nestas circunstâncias."

Aniceto Silva pôs-se de pé e José também se ergueu.

"O senhor tem os seus deveres e eu tenho os meus", argumentou o médico. "Se um ser humano precisa de auxílio, tenho obrigação de o dar. Se o senhor não compreender isso... paciência."

O inspector puxou-o suavemente pelo braço em direcção à porta.

"Eu compreendo-o se o doutor me compreender." Esboçou um sorriso enigmático. "Se é que me compreende."

O homem da DGS abriu a porta e deixou o director do hospital passar. Já no corredor, José hesitou, como se tivesse sido assaltado por uma ideia, e voltou-se para trás.

" inspector, queria pedir-lhe um favor."

"Diga."

Nova hesitação. A ideia que tinha na cabeça era atrevida e precisava de ganhar balanço para a formular.

"Posso ver o turra que eu trouxe de Cazula?"O homem estava deitado numa esteira estendida no chão e soergueu-se quando a porta se abriu. Os olhos de José começaram por absorver o espaço exíguo onde acabara de penetrar. A pequena cela parecia um forno escaldante e tinha um aspecto imundo, com um fedor a urina e fezes a pairar no ar estagnado. A luz irrompia por uma janelinha no topo da cela e fixava-se na parede contrária, como um projector de cinema ainda ligado após o filme.

A atenção do médico desceu então para o recluso, que, sentado da esteira, o observava com curiosidade. O homem já não trazia a roupa esfarrapada com que o encontrara no mato, mas peças relativamente asseadas que evidentemente lhe haviam sido entregues no hospital. Tinha ligaduras a atar-lhe a coxa, mas pelo aspecto tornava-se evidente que já precisavam de ser mudadas.

"Olá, Ernesto", cumprimentou o médico, acocorando-se diante do homem. "Sou o doutor Branco. Como vai essa perna?"

O recluso lançou-lhe um olhar inquisitivo.

"Doutor Branco? Foi o senhor que me trouxe do mato?"

"Sim."O rosto de Ernesto abriu-se num sorriso sincero.

"Quero-lhe agradecer a sua gentileza. A madre Lúcia endere- çou-lhe os maiores encómios quando me encontrava internado no hospital e sinto-me extremamente grato pela assistência que teve a amabilidade de me prestar."

José ergueu o sobrolho, estranhando o vocabulário do guerrilheiro. Não era habitual encontrar no mato negros que falassem português daquele modo.

"Apenas cumpri o meu dever." Concentrou-se nas ligaduras. "Essa perna?"

"Está em franca recuperação. O doutor Feitor e a madre Lúcia fizeram um magnífico trabalho e salvaram-me a perna." Lançou um olhar resignado em redor. "O meu receio é que esta cela desfaça tudo. A ferida precisa de atenção, senão infecta outra vez."

"Vamos lá então ver isso."

O médico abriu a malinha e preparou um novo rolo de ligaduras e dois frascos, um de álcool e outro de mercurocromo. Depois concentrou-se na perna do paciente e começou a desenrolar-lhe a ligadura já suja.

"Ai", gemeu Ernesto.

Um pouco de dor era inevitável, considerando a gravidade da lesão, o pouco tempo de recuperação e as condições de menor higiene naquele espaço, pelo que José procurou que os seus movimentos fossem mais suaves. Examinou a perna e percebeu que ela tinha emagrecido e estava visivelmente mais mirrada do que a outra, o que era natural considerando que o paciente deixara de a usar e é a função que faz o músculo; se a perna não exerce a sua função, o músculo simplesmente desaparece.

"Então tu és turra?", perguntou o médico, mais para manter Ernesto distraído do que por curiosidade pessoal. "Andas aos tiros à tropa?"

O paciente hesitou, como se ponderasse o que deveria responder.

"Não sei nada da guerra, doutor."

"Ai não? Então como é que ficaste ferido?"

"Eu faço o que o chefe me manda. O chefe mandou-me ir para o mato, eu fui para o mato. Os chefes tomam as suas decisões e nós é que arcamos com as consequências, não é verdade?"

José sorriu.

"Sei bem como é." A ligadura já tinha sido toda retirada e a ferida encontrava-se exposta. Estava suturada, mas uma breve inspecção tornou evidente que precisava de mudar os pontos. O médico aprontou a agulha e pegou num pedaço de algodão e num frasco e deitou álcool sobre o algodão.

"Prepara-te."

"Para quê, doutor?"

"Vai doer."

Encostou o algodão à ferida e o paciente urrou.

O curativo durou meia hora e, quando saiu da cela, o médico foi direito ao gabinete de Aniceto Silva. O inspector ditava um ofício à secretária enquanto girava em círculos pensativos diante do ar condicionado, mas interrompeu a tarefa para atender o visitante.

"Então o seu protegido?", gracejou. "Está finório?"

" inspector, aquela cela não tem condições para uma pessoa em convalescença."

O homem da PIDE encolheu os ombros, como se declinasse responsabilidades.