"Isto não é um hospital, doutor. Nem um hotel."
"Mas nestas condições a ferida vai infectar outra vez. Aliás, a infecção já está a começar. Se eu não o tivesse visto agora, a coisa desenvolvia-se e era uma chatice."
Aniceto Silva apoiou-se noutra perna, num movimento subtil a exprimir alguma impaciência.
"lá, mas está fora de questão o gajo voltar para o hospital", rosnou. Depois pareceu absorto, como se reconsiderasse. "A não ser que o doutor viesse cá vê-lo de dois em dois dias..."
Deixou a ideia pairar, dando a entender que tinha acabado de apresentar uma solução e que cabia ao seu interlocutor agarrá-la. O médico percebeu a intenção.
"Isso era uma possibilidade", conformou-se José. "Ou venho eu ou mando alguém. Ele precisa de mudar de pontos e de ligaduras."
O inspector deu-lhe uma palmada no ombro, como se tivessem acabado de fechar um acordo.
"Então está combinado", exclamou. "Acha que consegue pô-lo a caminhar numa semana?"
"Numa semana?", admirou-se o médico. "Nem pensar! Ele vai precisar de pelo menos um mês de convalescença e mais um mês de fisioterapia para recuperar o músculo, que já está a perder com a inactividade. Só depois poderá andar normalmente."
A língua do homem da DGS fez um estalido contrariado.
"Que merda! Dois meses para recuperar? Tem a certeza?"
"Dois meses, se não forem mais", insistiu o médico. Carregou as sobrancelhas, a curiosidade a espicaçá-lo. "Mas, desculpe lá, para quê tanta urgência?"
"Tenho de entregar o tipo aos comandos." Indicou com a mão um mapa que tinha no gabinete.
"Queremos que ele os leve para identificar bases, zonas de passagem e pontos de abastecimento.
Mas isso tem de ser feito rapidamente, porque senão os turras mudam as rotas e a informação fica desactualizada."
"Se é para isso, desengane-se", atalhou José com ênfase. "Ele vai precisar de tempo para recuperar."
Aniceto Silva abriu os braços, numa postura de frustração, e respirou fundo, o olhar desagradado a perder-se no corredor.
"Então o que faço com o tipo?"
Era uma questão que ultrapassava o director do hospital.
"Bem, não sei. O que ia fazer com ele depois de o entregar aos comandos?"
O inspector premiu os lábios e olhou para o seu interlocutor como quem acha que está a falar com um idiota.
"O doutor, ele ia e já não voltava."
"Não voltava como?"
"O senhor não sabe que um turra que é entregue aos comandos nunca mais regressa?"
A declaração foi de tal modo perturbadora que o médico pensou ter ouvido mal.
"Perdão?"
O chefe distrital da DGS revirou os olhos e respirou fundo, quase enervado com tanta ignorância e ingenuidade'
"Estamos em guerra, doutor", disse num tom pedagógico, como um professor primário a explicar o abecedário a uma criança. "Quando um turra vai com os comandos, não volta. Depois da operação o gajo não passa de um peso-morto. Se o trouxerem para aqui, o que fazemos dele?
Mandamo-lo de férias para a Beira? E uma chatice a mais que para aí temos. Por isso os comandos limpam-lhe o canastro, escrevem no relatório que ele tentou fugir e o caso fica logo resolvido."
José teve dificuldade em acreditar no que ouvia e permaneceu um instante sem saber o que pensar ou dizer. Seria brincadeira? Mas o tom convicto com que o inspector falara tirou-lhe as dúvidas.
"Eles podem fazer isso? Não é ilegal?"
Aniceto Silva encolheu os ombros, como se o argumento fosse absolutamente irrelevante.
"Oh, doutor!... Há tanta coisa ilegal nesta vida! Estamos em guerra, não estamos? Numa guerra estas coisas acontecem!..."
Inquieto e já algo alarmado, o médico apontou com o polegar para o corredor, ao fundo do qual se encontravam as celas, incluindo aquela onde haviam fechado o guerrilheiro de Cazula.
"O que lhe vão fazer?"
O inspector suspirou, resignado.
"Para já, nada. Teremos de aguardar os dois meses para o entregar aos comandos. Que remédio!"
"Mas isso significa que o vão matar!..."
O homem da DGS abriu as mãos, indicando que a questão o ultrapassava.
"Já lhe disse, é a guerra."
Não era a resposta que o médico queria ouvir. José endirei- tou-se quase empertigado, e encheu o peito de ar, como se buscasse energia para enfrentar aquele problema.
"Oiça, inspector, isso não pode ser", disse numa voz baixa e tensa, a cabeça a abanar com ênfase.
"Entregue-me o homem e ele fica à minha responsabilidade."
As linhas do rosto de Aniceto Silva contraíram-se, desenhando uma expressão de incompreensão.
"À sua responsabilidade? Não estou a perceber..."
"Entregue-me o homem", repetiu o director do hospital. "Se o senhor não sabe o que lhe vai fazer, não o entregue aos comandos. Entregue-mo a mim."
O inspector da DGS ouvia mas não acreditava.
"O doutor enlouqueceu? Quer que eu lhe entregue um turra? Fica com um turra nas mãos? Um turra? A que propósito?"
"A propósito de que vocês não sabem o que lhe vão fazer. Mas eu sei. Entregue-mo a mim e eu encarrego-me dele."
Aniceto Silva abanou a cabeça.
"Nem pensar!", exclamou com grande convicção. "O doutor não sabe com quem está a lidar!
Este tipo é um turra! A primeira oportunidade pisga-se e vai juntar-se aos outros." Apontou o dedo ao seu interlocutor. "E se não lhe cortar o pescoço antes de se ir embora já o senhor está com muita sorte!..."
"Isso não vai acontecer", retorquiu José com igual firmeza. "De qualquer modo é problema meu.
Eu responsabilizo-me por ele e o senhor fica com o seu problema resolvido."
O inspector abalou pelo corredor e começou a caminhar em direcção à saída, indicando assim que a conversa terminara e que o seu convidado se devia ir embora. José percebeu que o caso estava quase perdido, mas intuiu que a única maneira de inverter as coisas era jogar a sua carta mais alta. Se ela não resultasse, nada resultaria. Por isso não acompanhou Aniceto Silva, preferindo permanecer plantado no lugar onde se encontrava.
"Se não me entregar este homem", atirou para a figura que se afastava, "o Serviço Médico Aéreo acaba."
A carta tinha sido lançada e era forte, pelo menos o suficiente para o responsável da DGS
estacar ao fundo do corredor e girar sobre os calcanhares.
"O quê?"
"E como eu lhe disse. Se não me entregar o recluso, acaba-se o Serviço Médico Aéreo."
Aniceto Silva ficou momentaneamente sem palavras. Tentava perceber a relação causa-efeito entre as duas coisas, o guerrilheiro e o Serviço Médico Aéreo, mas não conseguia estabelecer a menor ligação e o seu semblante reflectia a maior das perplexidades.
"O doutor ensandeceu?", perguntou com genuína sinceridade. "Quer acabar o Serviço Médico Aéreo por causa de... de um turra? Não estou a perceber!..."
Foi só neste instante que José Branco saiu do seu lugar e, num gesto quase conciliador, começou a percorrer o corredor em direcção ao chefe distrital da DGS.
"É muito simples", disse num tom sereno e profissional, como se expusesse uma evidência. "Os turras entregaram-me um ferido no mato. Eu prometi tratá-lo e trouxe-o aqui para Tete. O que eles vão concluir é que eu o entreguei à PIDE, a PIDE entregou-o aos comandos e os comandos mataram-no. Está a ver a situação?"
"Sim. E então?"
O médico chegou diante do inspector e imobilizou-se; dir-se- ia que o queria enfrentar em duelo.
"O que irá acontecer da próxima vez que o meu avião aterrar no mato e os turras vierem ter comigo? O que irá suceder quando eles me disserem: confiámos em si, entregámos-lhe um ferido e vocês mataram-no? O que acha que os turras me vão fazer? Acha que nessas circunstâncias o Serviço Médico Aéreo tem condições de segurança para continuar a funcionar?"