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As perguntas deixaram Aniceto Silva abalado; os seus olhos pareciam vidrados enquanto considerava aquele cenário inesperado. Como era possível que aquilo não lhe tivesse ocorrido?

"Porra!"

Sentindo nesse instante que a partida estava ganha, José evitou mesmo assim sorrir; sabia que era importante nunca humilhar um derrotado, especialmente tão poderoso como aquele. Em vez disso pousou-lhe a mão no ombro, quase como se o quisesse reconfortar, mas não conteve uma ponta de prazer, orgulho até, no momento em que formulou a pergunta seguinte.

"Quando é que venho buscar o preso?"O lodo escuro e pegajoso tinha algo de repelente, mas Diogo Meireles não dispunha de alternativa. Rastejou no meio da erva, esfregando-se naquela lama nojenta, até se posicionar no ângulo que lhe pareceu mais favorável, mesmo no limiar da crista de uma pequena elevação. Apontou a G3 na direcção onde sabia esconder-se o alvo e aguardou. As moscas aproximaram-se, zumbindo a rasar o lodo, teimosas e enervantes, mas Diogo ignorou-as, determinado a não perder a oportunidade que se avizinhava.

A figura emergiu de repente, saltando por cima da erva, e Diogo voltou para ela a arma e disparou uma rajada. A placa de madeira recortada com o perfil de um homem armado tombou, sinal seguro de que fora atingida.

"Toma!", rosnou. "Um já está!"

Após três meses nas Caldas da Rainha a fazer o curso de miliciano, Diogo tinha sido transferido para Tavira, onde começara um novo curso, de atirador. Passou esses três meses a acordar de madrugada para se enterrar no lodo das salinas em exercícios diários de combate e emboscadas, agarrado à suaprimeira G3 e a disparar balas reais, como nessa ocasião em que rastejou pelo lodo para atingir uma placa de madeira que os instrutores haviam ocultado na erva.

No início da recruta em Tavira teve alguma dificuldade em habituar-se à arma, devido ao coice dos disparos e ao trovejar que lhe parecia rasgar os tímpanos, mas três meses mais tarde, quando foi dado como apto para a guerra, já tratava a G3 com a familiaridade com que lidava com uma bola de voleibol.

Aprendeu tácticas de contra-guerrilha, desenvolvidas com base numa mescla das experiências francesa, britânica e americana, e quase decorou o manual em vigor, O Exército na Guerra Subversiva, e em particular a doutrina de que "a guerra subversiva era, essencialmente, um problema de conquista da população". O combate, sustentava o manual, podia ser a faceta mais dramática da guerra de contra-subversão, mas não era a mais importante; a chave estava no apoio das populações.

Passou então para o quartel da Guarda, onde ficou à espera de colocação, presumivelmente num qualquer posto no Ultramar. Inquiriu camaradas e leu tudo o que havia na imprensa. O

cruzamento das informações permitiu-lhe esboçar uma ideia do que o esperava, mas foi o avô quem lhe fez um retrato mais claro quando, no fim-de-semana da Páscoa de 1971, Diogo foi a Penafiel e com ele conversou sobre os vários cenários possíveis para onde poderia ir.

"Os piores são a Guiné e o Norte de Moçambique", disse-lhe o capitão Mário Branco, o rosto riscado pelas rugas e a cabeça reluzente já quase sem cabelo. "Se fores para Angola, rapaz, podes ir a Fátima agradecer a Nossa Senhora."

"E Cabo Verde?"

"Ui, isso merecia uma peregrinação a Roma!", sorriu o velho capitão. "Nos tempos que correm, Cabo Verde, São Tomé, Macau e Timor são verdadeiros paraísos para quem anda na tropa."

A conversa decorria no escritório do rés-do-chão, onde se havia concentrado toda a família para aguardar a chegada do compasso. Amélia, que seguia o diálogo e se sentia igualmente preocupada com o destino do neto, não se conteve.

" Mário, sendo tu do exército e tendo amigos no Estado- Maior, lá em Lisboa, não podias ir dar uma palavrinha para ver se... se safavas aqui o nosso Dioguinho?"

Avô e neto entreolharam-se.

"Nem pensar!"

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A dúvida durou ainda alguns meses, como se os deuses estivessem demasiado ocupados com outros assuntos ou talvez a magicar-lhe alguma partida, mas a longa espera terminou finalmente à entrada de 1972, numa manhã em que Diogo se encontrava deitado na sua camarata, enroscado numa manta para se proteger do agreste frio serrano.

"Ainda a dormir?"

A voz irrompeu-lhe no sono. Estremunhado, ergueu a cabeça e viu o alferes do serviço postal debruçado sobre a sua cama a estender-lhe um envelope.

"Hã? Que é isso?"

"O que havia de ser, pá?", perguntou o alferes, abanando o sobrescrito. "é a tua guia de marcha!"

"O quê?"

"Pega lá nessa merda!"

Num gesto mecânico, quase sem pensar, Diogo estendeu a mão e tentou segurar o envelope, mas ele caiu-lhe aos pés da cama. Mesmo assim o alferes deu a entrega como consumada e fez meia volta, volatilizando-se tão depressa como se materializara.

"Boa sorte, pá!"

Diogo levou meio segundo a despertar por completo. Sentou- se na cama e, de repente alheio ao frio, fitou longamente o envelope castanho, os dedos a coçarem o cabelo desgrenhado, o coração aos saltos de ansiedade. Como era possível que um sobrescrito tão ridiculamente minúsculo, pensou, encerrasse a chave do seu futuro? Quase teve receio de voltar a pegar nele, nem sequer lhe quis tocar, mas depressa considerou que, se tinha medo de uma coisa tão simples e inofensiva, o que faria quando um dia estivesse diante do inimigo?

A interrogação serviu para derrotar as hesitações. Pegou no envelope e rasgou-o pelo canto.

Extraiu a folha que ele guardava e desdobrou-a; era de facto a guia de marcha. O documento anunciava-lhe que passava à condição de rendição individual, o que significava que ia substituir um soldado caído; talvez se tratasse de um ferido ou, quem sabe, um morto.

Os olhos deslizaram pela folha, deambulando entre as palavras frias e formais do burocratês militar, em busca do essencial, o destino que lhe haviam reservado e cujo nome se recortou por fim a quatro letras na penúltima linha do texto impessoal.

Tete.A consulta da manhã decorria como habitualmente no hospital de Tete. Havia já algum tempo que José Branco fixara as deambulações aéreas pelo distrito em quatro dias, arrancando à terça e regressando na sexta-feira, de modo a assegurar as consultas no hospital às segundas-feiras.

Acontecia até com frequência voltar a Tete a meio da semana, ou até todos os dias, uma vez que o número de pacientes diminuíra no mato. O facto é que as campanhas de vacinação tinham produzido resultados espectaculares e conseguira mesmo erradicar algumas doenças, feito festejado a whisky no bar do hospital.

A meio dessa manhã, e depois de ter lidado com alguns casos de diarreia e dois de paludismo, entrou-lhe no gabinete um militar que se identificou como o alferes Fonseca. No seu encalço vinha uma mulher com um bebé ao colo. O interessante neste caso é que a mulher era negra e ele branco.

"É a nossa menina, senhor doutor", disse o militar com a angústia no olhar, apontando para a criança que se encontrava no colo da mulher. "Está muito doente e já não sabemos o que lhe havemos de fazer.""O que tem ela?"

"Começou com febre, mas esta noite pôs-se a vomitar com alguma violência e nós assustámonos."

O médico dirigiu-se à marquesa, onde a mãe deitou a criança. Bastou um olhar e a identificação de duas pústulas na boca para José diagnosticar a doença.

"Isto é varíola."

Disse-o de uma forma ligeira, como se estivesse a falar de uma mera constipação, mas o alferes era um homem observador e apercebeu-se da perturbação no olhar conhecedor do médico.