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"Tem cura, não tem?"

José Branco não respondeu imediatamente. Ficou a fitar a criança, como se tentasse tomar uma decisão.

"A menina ainda é latente?"

"lá, senhor doutor", confirmou o alferes, tentando ler-lhe na expressão o que pensava. "Tem apenas seis meses. Porquê?"

O médico fez um estalido com o canto da boca, como se a informação não fosse do seu inteiro agrado.

"A varíola é complicada no caso dos latentes", sentenciou. "Vamos ter de a internar."

O casal reagiu com alarme à decisão, com a mulher a puxar a filha para o colo, como se assim a protegesse, e o alferes a mostrar-se surpreendido.

"Mas... mas ela só tem seis meses, doutor!..."

"Precisamente por isso."

Mantendo sempre o semblante de quem achava tudo aquilo normal, José foi à porta do gabinete e espreitou para o corredor, mas não avistou nenhuma enfermeira. Fez então sinal ao casal de que o acompanhasse e levou-o até à enfermaria. Os pais da criança mostravam-se muito inquietos com a decisão de internamento, pelo que percebeu que teria de os acalmar. A melhor forma era distraí-

los.

"A sua mulher que fique descansada. Vamos deixá-la permanecer cá no hospital com a menina."

"Agradeço-lhe, senhor doutor", retorquiu o alferes, subitamente embaraçado. "Sabe, a Mariana...

enfim, ela não é minha mulher. Queremos casar, claro, mas o exército está a levantar uns obstáculos... é uma chatice!"

O director do hospital deitou um olhar perscrutador à negra, que apertava a filha entre os braços. Era uma rapariga bonita, de porte altivo e lábios espessos, decerto bons de beijar.

"Conhecem-se há muito?"

"Há dois anos, doutor. Eu sou comandante da OPV, não sei se conhece. E a organização de polícias voluntários..."

"Sei muito bem. São vocês que policiam os aldeamentos que o GPZ anda a construir por todo o distrito."

"Precisamente. O meu trabalho é recrutar e treinar indígenas para procederem ao policiamento dos aldeamentos, de modo a dificultar a infiltração pelos turras." Apontou numa direcção vaga, que José sabia ser o Zambeze. "Opero ali no quartel do Matundo, não sei se já lá foi."

"Conheço, pois."

"Acontece que uma vez cruzei-me com a Mariana, que é filha de uns machambeiros que vivem ali perto do quartel, e... sabe como é, apaixonámo-nos. Como o exército desencoraja as relações com os indígenas, não tivemos possibilidade de nos casar." Encolheu os ombros e voltou-se para trás de modo a lançar um olhar meigo à mulher. "Mas é como se estivéssemos casados."

Chegaram à enfermaria feminina e o director do hospital voltou a não localizar nenhuma enfermeira. Foi à sala de descanso e deparou-se com um vulto de bata branca sentado a ler um livro, mas percebeu que não era nenhuma enfermeira. Tratava- se de Nicole.

"A Lúcia?"

A rodesiana ergueu os olhos azuis e, ao reconhecê-lo, sorriu- lhe.

"Veio um padre espanhol e foram almoçar." Piscou o olho esquerdo. "Eu acho que é desculpa, né? Padre e freira juntos? Hmm..." Riu-se. "Devem estar rezando!..."

Ao longo dos últimos dois anos, a relação entre José e Nicole havia-se tornado intermitente. Ela passava a vida entre o Songo e Salisbúria, mas ia com alguma frequência a Tete a pretexto de haver uma certa complementaridade com o seu trabalho no Songo, o que não era de todo inexacto.

Ajudava um ou dois dias no hospital e aproveitava para manter o contacto com o amante português antes de seguir de novo para o Songo ou regressar à Rodésia. Aquela era uma dessas circunstâncias.

O director do hospital chamou Mariana e a filha e apresentou-as à médica rodesiana.

"Oiça, preciso que veja esta menina", indicou. "Tem seis meses e está com varíola." Lançou uma espreitadela para a fileira de camas na enfermaria. "Ponha-as num quarto particular, está bem?"

Nicole olhou para a criança, depois para a mãe e por fim para José, uma expressão de estupefacção desenhada no rosto.

"Um quarto particular?", interrogou-se, voltando a pousar os olhos na negra como se a ordem fosse absurda. "Mas... e pode?"

"Claro que pode", retorquiu o director do hospital, espreitando de relance para o relógio e regressando já ao corredor. Ia almoçar a casa, mas precisava ainda de concluir as consultas. "Cuide bem da menina."

O empadão de Mímicas era o prato favorito de José e ementa obrigatória nos almoços de segunda-feira em casa, mas quando nesse dia o provou sentiu pousar nele o olhar inquisitivo da mulher.

"Então?", quis ela saber. "O coiso está bom?

"Uma maravilha, como sempre", elogiou José. "Já sabes que não há empadão como o teu."

Mimicas soltou uma gargalhada deliciada e lançou um olhar cúmplice ao empregado, que observava a cena com uma atenção que o médico percebeu ser pouco usual.

"Não fui eu que o fiz", revelou a mulher. "Foi o Ernesto!"

O marido olhou para o empregado como se buscasse confirmação, que obteve logo que o viu sorrir.

Ernesto trabalhava lá em casa desde que o retirara da DGS e com ele fizera o pacto de que o empregaria a troco de um salário e a promessa de que não voltaria para o mato, sob pena de criar problemas ao seu protector. Contrariando os augúrios de Aniceto Silva, as coisas correram bem e ao longo desses dois anos o acordo fora respeitado por ambas as partes. Desenvolveram até uma certa relação de confiança, ao ponto de Ernesto confidenciar ao seu empregador que era perito em minas e armadilhas da guerrilha quando fora ferido em Cazula. Agora um homem livre em Tete, casara e instalara-se com a mulher nuns quartos anexos à casa do director do hospital. Começara por se encarregar exclusivamente do jardim, mas pelos vistos Mimicas havia conseguido nesse dia convertê-lo às artes culinárias.

"Está visto", assentiu José com um gesto aprovador. "Já estou mesmo a ver que vamos perder o Ernesto. Sabem qual vai ser o próximo restaurante de Tete?" Esboçou com os dedos o desenho imaginário de uma placa identificativa. " Cbez Turra! Aposto que até o inspector Silva ia lá comer!"

A fileira nívea dos dentes de Ernesto reluziu com o sorriso esfíngico que esboçou perante a sugestão.

"A esse indivíduo", murmurou no seu português rebuscado, "eu misturo veneno no prato."

A sugestão não foi do agrado do médico, que lhe lançou um olhar reprovador.

"Ernesto, então? Que é isso? Aqui a política fica à porta de casa! Nós não podemos..."

Ia acrescentar mais qualquer coisa quando ouviu, vinda do exterior, a voz de uma mulher a chamar "doutor Branco!", duas vezes. O médico levantou-se e foi à varanda das traseiras ver o que era. A meio do quintal, à sombra da maçaniqueira, reconheceu a mulher do enfermeiro Mabunda de mão dada com um dos filhos.

"Doutor Branco, a polícia levou meu marido", disse ela com uma expressão de angústia. "Estou a pedir traz ele para casa."

José Branco suspirou, já cansado daquela história recorrente. O enfermeiro Mabunda tinha quinze filhos e, para azar dele, os dois mais velhos haviam fugido para o mato e tinham-se tornado guerrilheiros. A DGS fora informada do facto e passara a detê-lo com regularidade. As detenções revelaram-se de tal modo rotineiras que o próprio Mabunda recomendou à mulher que, sempre que a polícia o fosse buscar, informasse imediatamente o director do hospital. Era o que ela mais uma vez estava a fazer.

"Está bem", assentiu. "Volte para casa descansada que eu daqui a pouco vou à PIDE."

A mulher manteve-se, todavia, plantada no mesmo lugar e cruzou os braços, como se tivesse mais alguma coisa a acrescentar. O médico lançou-lhe um olhar expectante, encorajando-a a falar.