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"Levaram também o senhor Mendonça", acrescentou ela, nada embaraçada por trazer tantos pedidos. "E os amigos dele."

O director do hospital passou a mão pelo cabelo. Congela de Mendonça era outro dos seus enfermeiros que se viam frequentemente em apuros. Mendonça andava a estudar à noite com mais três amigos negros ligados a meios da oposição e a DGS, que suspeitava daqueles estudos, tinha por hábito convidá-los a fazer uso periódico dos seus calabouços. Quem os ia sempre lá buscar acabava por ser o médico.

"Eu também trato deles", prometeu José. "Vá lá à sua vida."

A mulher pareceu ficar satisfeita e abalou com o filho, deixando o director do hospital pensativo na varanda traseira da sua casa. José voltou devagar para a mesa e sentou-se pesadamente no lugar, o prato com o empadão ainda a fumegar. Olhou em redor e percebeu que estava sozinho; Ernesto já havia regressado à cozinha e Mimicas fora ao quarto mudar de roupa.

Pegou no garfo e mergulhou-o na comida. Quando o ia levar à boca, porém, o telefone tocou, levando-o a suspender o movimento.

"Que será agora?"

Pousou os talheres e, com um suspiro resignado, levantou-se para ir atender. Do outro lado da linha estava a sua enfermeira-chefe.

"Então, Lúcia? Como foi esse almoço com o padre, sua malandreca? Rezaram muito?"

"Doutor", disse ela num tom tenso; talvez não tivesse apreciado a graçola. "Preciso que o senor e

dona Mimicas venham aqui ao hospital com urgência."

A forma anormalmente seca como a freira falou deixou-o de sobreaviso.

"Porquê? Passa-se alguma coisa?"

Fez-se um silêncio pesado na linha.

"Chegou ahora um helicóptero aqui ao hospital. Houve uma emboscada dos guerrilleros na Angónia. Fizeram um muerto." Fez uma pausa. "O helicóptero trouxe o cuerpo."

"Sim, e então?"

Um novo silêncio ao telefone tornou subitamente claro que ela sabia que a notícia que tinha para dar ia chocar o director do hospital.

"Fue o comandante Trovão, doutor."O furriel estava de calções e tronco nu a escrever uma carta quando sentiu uma presença na tenda. Levantou a cabeça e deparou-se com um rapaz alto e magro, impecavelmente fardado de camuflado e com um rosto ossudo e juvenil, o cabelo castanho a espreitar por baixo do boné em madeixas levemente encaracoladas nas pontas; trazia as insígnias de furriel nos ombros e uma enorme mochila às costas.

"Olaré!", exclamou o homem em tronco nu. "Temos aqui o Paulo de Carvalho ou quê?"

O recém-chegado deteve-se, admirado com a referência ao cantor da moda, vedeta emergente do Festival RTP da Canção que se transformara já no ai-jesus das miúdas da Metrópole, e olhou em redor para ver se havia ali mais alguém. Não havia, pelo que concluiu que era a ele que o camarada se referia.

"Paulo de Carvalho?"

"Sim, Paulo de Carvalho", insistiu o homem em tronco nu. "És a cara chapada do gajo, pá." Soltou uma gargalhada. "Não me digas que também cantas. Ora canta lá!..." Sem esperar pela resposta, pôs-se ele mesmo a trautear a melodia que por essaaltura animava as emissões de rádio de Lisboa:

"Na mesma rua, na mesma cor, passava alegre, sorria amor..."

Ignorando a voz esganiçada, o intruso verificou um documento e pousou a mochila no catre correspondente ao número que vinha assinalado no papel. Depois sentou-se no catre e, descontraindo o corpo, soltou um gemido de satisfação.

"Ah! Até que enfim!"

O homem de tronco nu não apreciou aquele à-vontade e, parando de cantar a meio de uma estrofe, soergueu-se no catre.

"Olha lá, esse lugar não é teu!"

"A partir de agora é."

"Não é não. Esse lugar pertence a um camarada que... a um camarada nosso."

O recém-chegado franziu o sobrolho.

"Um camarada que se foi numa emboscada", completou. "Eu sei. Vim destacado para o substituir."

O homem de tronco nu imobilizou-se, como se analisasse o que sentia e ponderasse o que fazer.

A ocupação do catre do amigo caído suscitava nele emoções contraditórias; por um lado, parecia-lhe desrespeitar a memória daquele que morrera, por outro, constituía um sinal inequívoco de que a vida continuava. Respirou fundo, resignando-se à inevitabilidade de que na tropa havia mesmo vida depois da morte.

"Como te chamas?"

"Diogo", respondeu o novo furriel. "Diogo Meireles."

"És checa?"

A pergunta extraiu de Diogo uma expressão interrogativa.

"O quê?"

"Perguntei-te se és checa! Maçarico, novato..."

O recém-chegado percebeu.

"Ah, sim. Acabei de chegar da Metrópole."

"Mais um aramista, portanto."

Diogo estranhou a palavra. "Hã?"

"O que vens cá fazer, pá? Tratar da contabilidade, ajudar na cozinha, despachar processos administrativos?..."

Aquela lista de operações suscitou uma gargalhada do novato.

"Quais processos administrativos?", admirou-se Diogo, a face contorcida num esgar irónico.

"Que eu saiba venho aqui para combater."

"Portanto não vais ficar atrás do arame farpado?!"

"Só se me obrigarem."

O homem de tronco nu assentiu, como se assim tivesse completado o retrato do novo ocupante da palhota dos furriéis, e endireitou-se no catre.

"Eu sou o Alexandre", apresentou-se. "Mas todos aqui me chamam Chaparro. Tal como tu, também não sou um aramista."

Diogo reconheceu o nome.

"Ai tu é que és o Chaparro? O capitão disse-me que me ias entregar a arma..."

Estas palavras fizeram Chaparro revirar os olhos de enfado. Após um suspiro longo e paciente, o homem pousou a caneta e o papel e quase arrulhou de preguiça só por causa do esforço que teve de fazer para se pôr em pé. Coçou os abundantes pêlos do peito e lançou um olhar ressentido na direcção do recém-chegado, como se o recriminasse pelo trabalho que já lhe estava a dar. Depois meteu os dedos dentro dos calções e coçou também os pêlos da púbis enquanto resmungava umas palavras incompreensíveis que culminaram numa referência quase inaudível ao que parecia "estes malditos chatos". Diogo ficou sem saber a que chatos se referia o camarada, se ao recém-chegado que já lhe estava a dar trabalho, se aos que lhe faziam comichões. Depois Chaparro ajeitou as cuecas e os calções, puxando-os para cima, cheirou a ponta dos dedos com que se coçara, murmurou

"hmmm... belo perfume!" e saiu da palhota com um breve "já venho!"

Chaparro não tinha ar de ser pessoa particularmente rigorosa, mas o facto é que a promessa foi cumprida e o homem em tronco nu voltou alguns minutos depois com uma G3 e um cunhete de madeira carregado de granadas e munições.

"Tens aqui o material de trabalho", anunciou, estendendo a espingarda-automática ao recém-chegado. "Pega lá na companheira." Atirou a caixa das munições para o lado do catre. "E aqui tens as ameixas e os pirolitos. Trata do material com o mesmo amor com que cuidas dos tomates, ouviste?"

Diogo sentou-se no catre e sentiu o peso da G3. Passou o indicador pelo interior do cano e logo a seguir verificou o dedo; vinha sujo, o que significava que teria de passar algum tempo a limpar a arma. Cheirou a espingarda automática e percebeu também que teria de ser oleada.

"Olha lá, Chaparro", disse, sem tirar os olhos da G3. "Isto é o BART, não é?"

O furriel que lhe entregara a arma e as munições mantinha-se displicentemente de pé diante do catre, talvez com preguiça de percorrer os cinco metros de volta ao seu lugar.