"lá, porquê?"
"Que eu saiba, BART significa Batalhão de Artilharia." Fez um gesto a indicar a entrada da palhota. "Mas lá fora não vi nenhum canhão..."
Chaparro soltou uma gargalhada ruidosa que logo se transformou num ataque de tosse.
"És um cómico, pá", exclamou logo que recuperou o fôlego. "Esta merda chama-se artilharia, mas aqui só há infantaria."
"Então porque lhe chamam artilharia?"
O camarada encolheu os ombros.
"Sei lá!", disse com aparente indiferença. "Tá tudo doido, pá. Nada neste buraco faz sentido!..."
"Também não é bem assim", contrapôs Diogo, habituado pelas contingências da alta competição a rejeitar posturas pessimistas; um campeão pensa sempre positivo, era o seu lema. "Pode ser que haja coisas que não façam sentido, mas a verdade é que a nossa missão aqui é importante.
Precisamos de conquistar a mente e o coração das populações. Para isso é necessária uma atitude civilizadora, não uma..."
Com um gesto inesperado, Chaparro arrancou-lhe a arma das mãos. Diogo calou-se, surpreendido. O furriel em tronco nu puxou a culatra, introduziu uma bala na câmara e apontou para a entrada da palhota, preparado para abrir fogo.
"Atitude civilizadora?", rosnou. "Aqui a regra é estar pronto para matar, ouviste?" Desviou o olho da mira para o recém-chegado. "Essas aldrabadas que acabaste de papaguear não passam de conversa para tolos. Isto é o mundo real, não são as fantasias que te ensinam na instrução." Fez um gesto com a cabeça, a indicar o catre de Diogo. "Sabes porque quinou o camarada que antes ocupava o teu lugar? Porque tinha maningue paleio, mas não estava preparado para matar. Essa é que é a verdade. Se quiseres saber o que acontece a quem não mata, a resposta é simples: é morto."
Baixou a arma e devolveu-a. "Se não estás preparado para matar, é melhor que te prepares.
Entendido?"
"Sim."
Chaparro deu meia volta e arrastou-se até ao seu catre. Antes de se deitar, voltou a meter a mão pelos calções e coçou novamente os pêlos da púbis, desta vez num frenesim vigoroso.
"Porra p'rós chatos!"
A vida no Chioco cedo se adivinhou de um tédio indescritível. A posição fortificada situava-se algures no meio do mato, no final de um longo trilho que partia da estrada entre Tete e o Songo e desembocava num leito de rios secos que só se enchiam na época das chuvas.
O BART, nome pelo qual era conhecido o Batalhão de Artilharia 7220, tinha o comando instalado em Changara, uma terriola na estrada entre Tete e Vila Pery que permitia controlar também o acesso vital à Rodésia, mas dispunha de companhias instaladas noutras posições ainda mais isoladas, como Chinanga, Chinhande e Chioco.
Na primeira manhã após a chegada, Diogo foi dar uma volta pelo posto do Chioco. Depressa descobriu que se tratava de um espaço exíguo rodeado de trincheiras e arame farpado e preenchido por palhotas, casotas e tendas com funções diferentes. Algumas serviam de dormitório, numa fora instalado o comando, outra era a secretaria, uma terceira o refeitório; havia ainda a enfermaria, a cozinha, o centro de transmissões, a oficina auto e a despensa. O paiol, que requeria cuidados especiais por causa dos bombardeamentos por morteiros e por canhões sem recuo, fora escondido em instalações subterrâneas devidamente protegidas e camufladas.
"Olha lá, ó Chaparro" , chamou Diogo depois de percorrer pela primeira vez todo o perímetro.
"Onde é que... enfim, onde é que a malta se... se alivia?"
"Queres cagar?"
A pergunta formulada assim de forma tão embaraçosamente directa embarrancou o recém-chegado. Diogo tentou fingir um ar natural, mas não conseguiu ocultar um leve rubor.
"Quer dizer... sim."
Chaparro, que acordara pouco antes e já andava outra vez de calções e tronco nu a coçar os abundantes pêlos que lhe espreitavam pelo corpo, fungou e escarrou para o lado.
"Se fosse a ti, aguentava o cagalhão."
Diogo fez um ar admirado.
"Ora essa! Porquê?"
O camarada respondeu com um gesto, indicando-lhe que o seguisse. Caminharam os dois entre as tendas e as duas palhotas dos furriéis até atingirem o limite do perímetro no sector junto ao leito dos rios secos. Numa elevação antes de a terra se inclinar para o leito viam-se três casinhas de madeira protegidas por sacos de areia.
"Anda cá, ó Paulo de Carvalho", disse Chaparro, dando-lhe com os dedos sinal de que se aproximasse ainda mais. "Estás a sentir este aroma revigorante?"
Diogo já se havia apercebido do fedor das fezes ainda antes de chegarem ao local.
"Então não?"
Chaparro indicou as três casinhas.
"São aqui as latrinas", anunciou. Apontou para o leito seco e para a vegetação na outra margem.
"Como vês, é uma posição maningue exposta. Às vezes os turras escondem-se do outro lado e entretêm-se a disparar para as latrinas enquanto a malta se esforça por depositar a flor. É por isso que só se deve vir aqui quando a noite cai."
"Estou a ver."
Os olhos de Chaparro, sujos de ramela, desviaram-se das latrinas para o recém-chegado.
"Ainda queres arrear o calhau?"
Diogo coçou a cabeça e avaliou a pressão no ventre; havia alguma urgência na coisa. Por outro lado, não podia ignorar o problema do espaço aberto por trás das latrinas; era de facto extraordinariamente exposto. O que fazer? Embrenhado no dilema, lembrou-se que talvez na enfermaria houvesse algum comprimido que lhe permitisse adiar a aflição as horas suficientes até a noite cair.
"Se calhar é melhor esperar."
Aguentou de facto até ao crepúsculo e aproveitou ainda a luz do lusco-fusco, quando rasgavam já o horizonte vigorosas pinceladas de ouro, carmim e roxo, para aliviar os intestinos sem ter de enfrentar a situação na treva absoluta. Fê-lo em luta tremenda com as moscas que enxameavam as latrinas e uma complicada ginástica para não tocar com as nádegas em qualquer parte da casinha imunda, enquanto das casinhas vizinhas vinham os gemidos e os suspiros dos camaradas que aproveitavam igualmente os derradeiros raios de Sol para esvaziarem o ventre.
Percorreu depois o posto aos tropeções e às apalpadelas, quase como um bêbado, uma vez que a noite se abatera sobre o mato com rapidez fulminante. Consolava-se com o reconfortante pensamento de que se encontrava praticamente invulnerável; sem luz para a guiar, nenhuma bala inimiga o podia atingir.
Localizou o casebre do refeitório e, embora constatando que era o primeiro a chegar, entrou e sentou-se num banco a aguardar a hora de jantar.
Os outros homens foram chegando em grupos e os primeiros admiraram-se por se deparar com alguém às escuras.
"Então? Não ligas a luz?"
A pergunta surpreendeu Diogo. Que ele soubesse não havia electricidade no posto.
"Qual luz?"
A pergunta gerou uma gargalhada.
"A das bazucas, pá. Não tens aí nenhuma?"
Bazucas? A referência ao lança-granadas de ombro deixou-o estupefacto. Como poderiam as bazucas iluminar a tenda? De que estariam os camaradas a falar?
"Uh... não", gaguejou, preferindo não desvendar a sua ignorância. "Não tenho aqui nenhuma."
"Ora essa!", espantou-se um soldado. "Não tens nenhuma? Vai à geleira, pá! Há lá maningue bazucas."
Geleira?
"Ah, está bem", disse Diogo, fingindo-se ainda entendido mas sem nada entender. "Pois é, tens razão!..."
Os soldados ficaram a observá-lo, surpreendidos também eles com o inopinado diálogo; era manifesto que o camarada que haviam encontrado na tenda não fazia a menor ideia de nada e isso despertou neles uma ponta de desconfiança. Seria um turra? Ali na escuridão era difícil descortinar-lhe as feições, pelo que o receio de uma infiltração do inimigo lhes aflorou a mente.