Porém, notaram que o desconhecido falava um português metropolitano, até com um sotaque do Porto. Turra não podia ser. Não havia turras em Cedofeita...
"E o checa, pá!", exclamou por fim um deles. "O novo furriel que chegou ontem, caraças!"
A descoberta desencadeou uma galhofa de alívio, com os soldados a cobrirem as costas de Diogo de palmadinhas e a pedirem desculpa por não o terem reconhecido. Um deles dirigiu-se à ponta da tenda e abriu um frigorífico alimentado a petróleo; a luz do interior recortou-lhe a silhueta, mostrando-o de cócoras a voltar-se para trás.
"Meu furriel, está a ver isto?", disse, indicando o frigorífico. "Aqui em Moçambique chama-se geleira!" Apontou as garrafas de cerveja Manica arrumadas no interior, tão alinhadas que pareciam soldados na formatura. "E isto são bazucas!"
O soldado tirou uma garrafa e arrancou-lhe a carica, passando a Manica de mão em mão até todos a esvaziarem. Arrotaram quase em uníssono, riram-se com o feito e um deles começou a despejar um líquido na garrafa; pelo cheiro intenso e característico, Diogo apercebeu-se de que se tratava de petróleo. Depois enfiaram um trapo pelo gargalo e um outro acendeu um fósforo, pegando fogo à torcida de pano. A garrafa emitiu um clarão trémulo que iluminou toda a tenda, projectando sombras bamboleantes na lona.
"Já está!", exclamou o primeiro soldado ao pousar a garrafa no centro da mesa. "Ligámos o gerador."
Um outro soldado fez sinal ao furriel, indicando o fio de fumo que vinha do trapo a arder.
"Sente este cheirinho da bazuca?"
Diogo inspirou e registou de imediato o odor acre a petróleo queimado.
"Sim."
"E a outra vantagem de usar bazucas à noite", disse o homem, arqueando as sobrancelhas para sublinhar a astúcia da coisa. "Põem logo os mosquitos em sentido."
O jantar não foi refeição que entusiasmasse um gourmet. Galinha-do-mato com arroz branco e feijões, tudo regado a bazuca num ambiente surreal, com a tenda iluminada pelo halo espectral que cabriolava no gargalo das garrafas ateadas.
Enquanto mastigava uma coxa, Diogo pôs-se a observar os homens sentados à mesa, as feições dos rostos a bailarem com a penumbra ao ritmo do hálito trémulo das chamas que adejavam pela mesa sobre as garrafas. Apercebera-se já durante o dia da mistura racial que havia na companhia, pormenor que confirmou ao jantar. Metade dos camaradas de armas eram brancos e a outra metade negros ou mulatos de Moçambique. O facto pareceu-lhe natural; não era o regime que dizia que Portugal se estendia do Minho a Timor? No que lhe dizia respeito, o seu país era de facto imenso: começava no Rego da Agua e terminava no Chioco.
"Atã mê furriel?", quis saber um dos soldados. "Nã está boa a galinha? Nã quer mais? Olhe que tambê tem aqui pã e queije..."
Um algarvio, percebeu.
"Estou bem, obrigado."
A interpelação despertou-o para a multiplicidade de sotaques entre os camaradas da Metrópole.
Reparou que alguns soldados brancos comiam com as mãos, a face tão inclinada para a frente que o nariz quase tocava no prato, e mastigavam ruidosamente de boca aberta; sem surpresa, constatou que Chaparro era um deles.
"De onde és tu, Chaparro?"
"Do Redondo."
Dirigiu a mais três camaradas brancos a pergunta sobre as suas origens e percebeu que muitos desses homens da Metrópole, se não mesmo a maioria, eram gente do campo, agricultores que a guerra arrancara de Trás-os-Montes, da Beira Interior ou do Alentejo e atirara para o meio do mato em Africa.
Realmente!, raciocinou, os olhos a deambularem entre os soldados rudes que jantavam com grunhidos, arrotavam em abundância e limpavam a boca às costas das mãos. Como levar a cabo a missão civilizadora se os próprios civilizadores precisavam de ser civilizados?As fardas que habitualmente se viam no hospital de Tete eram os camuflados militares, mas quando naquele início de tarde José Branco e a mulher chegaram apressadamente às urgências depararam-se com uniformes da PSP por toda a parte. A consternação era geral e Mimicas, que até então se recusara a acreditar na notícia, começou a chorar por ver nos rostos carregados dos polícias a confirmação do que o marido lhe anunciara minutos antes.
A irmã Lúcia passou nesse instante pelo pátio com um balde de água e o director interpelou-a.
"Onde está o Trovão?"
A freira indicou com a cabeça uma porta das urgências reservada ao pessoal do hospital.
"Lá dentro."
José meteu pela porta e entrou numa sala onde se encontrava um corpo deitado sobre uma marquesa. Reconheceu o amigo e sentiu um nó apertar-lhe a garganta. Nem se conseguiu aproximar, como se uma barreira invisível o impedisse de avançar um passo que fosse. Deu meia volta e, contendo as lágrimas, saiu precipitadamente do edifício e juntou-se a Mímicas.
"Doutor Branco", chamou uma voz.
Ainda abalado, o médico voltou-se e reconheceu o homem fardado que o interpelara; era o tenente Lopes, subcomandante da PSP. Vinha com a camisa desfraldada e parecia desorientado.
"Senhor tenente", cumprimentou-o. Aquela era provavelmente a pessoa com quem mais precisava de falar naquele instante. "O que aconteceu?"
O tenente Lopes tirou o boné e limpou com as costas da mão a transpiração que lhe escorria em abundância pela testa.
"Foi esta manhã na Angónia", disse. Já tinha repetido vezes sem conta a mesma história em poucas horas, mas era como se precisasse de a relatar de novo. "O senhor comandante Trovão tinha ido lá para fazer uma visita de inspecção. Quando iniciou o caminho de regresso, os turras apareceram de surpresa na berma da estrada e metralharam a coluna no momento em que os carros iam a passar." Baixou a voz. "Ele foi atingido de lado."
"Teve morte instantânea?"
O tenente abanou a cabeça.
"Não."
O director do hospital suspirou, deprimido. Tal como no instante em que a irmã Lúcia lhe havia dado a notícia, lembrou- se da última vez que vira o amigo. Fora dois dias antes, no sábado, depois de terem jantado em casa dele. Trovão e Carolina, que estava grávida de um segundo filho, tinham ido à porta despedir-se. A derradeira imagem que guardava dele, apercebeu- se, era um aceno.
"Há uma coisa que não entendo, tenente", disse José, quebrando o súbito mutismo imposto pelas reminiscências. "O jipe do comandante Trovão não é blindado?"
O tenente Lopes assentiu.
"Foi um azar dos diabos, doutor. O administrador da Angónia quis falar com o senhor comandante e convidou-o a ir para o carro dele, que não é blindado, durante a parte inicial do percurso. De modo que à frente seguia o carro do administrador e atrás vinham os jipes blindados.
Quando os turras atacaram, dispararam sobretudo sobre o automóvel. O senhor comandante estava do lado errado dos assentos traseiros e foi atingido, mas o administrador safou-se."
Não havia muito mais a dizer. A conversa fora até ali acompanhada em silêncio por Mimicas.
"A Carolina deve estar devastada", observou ela enquanto abanava a cabeça. "Que horror!..."
O tenente Lopes pigarreou, quase embaraçado.
"Receio que a esposa do senhor comandante ainda não tenha sido informada", disse. "Foi uma grande confusão esta manhã e a nossa prioridade era trazê-lo aqui para o hospital. Agora temos de tratar das formalidades e... e informar a família."