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José e Mimicas entreolharam-se, sentindo a responsabilidade. Eram amigos pessoais do casal Trovão e não gostariam que a notícia fosse dada a Carolina de uma forma oficial.

"Isso não pode ser assim", murmurou Mimicas, respirando fundo como se se preparasse psicologicamente para o que a esperava. "Temos de ser nós."

Fizeram em silêncio o caminho até casa dos Trovão, uma vivenda de traça colonial relativamente perto do rio. Estacionaram por baixo de uma árvore, mesmo ao lado da esquadra da PSP, e, controlando o nervosismo, assomaram ao portão.

Carolina estava sentada no quintal a gozar a sombra fresca de uma mangueira e a ler um policial que tinha pousado no regaço, era um livro de Agatha Christie, enquanto a mão esquerda afastava distraidamente as moscas que zuniam em redor. O filho brincava com carrinhos no chão, os joelhos sujos de lama e poeira, o cabelo loiro a refulgir ao sol.

Ao aperceber-se de que alguém acabara de abrir o portão, Carolina levantou os olhos para ver de quem se tratava. Estranhou que fosse o casal Branco, não era habitual José e Mimicas visitarem-na àquela hora, mas pensou que isso não era impeditivo de que se revissem; afinal todas as ocasiões são boas para que os amigos se juntem. Pousou o livro no chão e levantou-se de pronto, exibindo a enorme barriga de grávida, e acolheu-os com um sorriso luminoso.

O sorriso, porém, não veio retribuído. Foi justamente nesse instante, ao identificar um estranho olhar opaco que nublava o semblante fechado dos visitantes, que Carolina tomou consciência de que havia algo de profundamente errado'e sentiu as pernas fraquejarem.

"Aconteceu alguma coisa?"

Enquanto manobrava o volante do automóvel no trajecto de regresso a casa, José ia ponderando se deveria ou não refazer os planos para o resto da semana. Seguia sozinho no carro, uma vez que Mimicas havia ficado com Carolina para a apoiar no que fosse necessário, e avaliava as vantagens e os inconvenientes de cada uma das duas opções que tinha em mente.

"Vou?", murmurou entre dentes, falando para si próprio como se desse modo conseguisse raciocinar melhor. "Ou não vou?"

O plano de voo do Serviço Médico Aéreo previa que partisse na madrugada seguinte, terça-feira, e saltitasse por todo o distrito até ao regresso, ao final da tarde de sexta. Deveria manter o plano ou seria melhor cancelar tudo? Sentia-se perturbado com a morte do amigo e tinha dificuldade em ver as coisas com clareza.

Considerando a sua relação com o comandante Trovão e a necessidade de apoio à família, o cancelamento das operações aéreas durante essa semana era sem dúvida o mais aconselhável.

Quando se inclinava para esta opção, todavia, o outro lado da questão fazia-se ouvir na sua mente.

Então e as centenas de pessoas que iam ficar nessa semana sem assistência médica devido à suspensão do Serviço Médico Aéreo? E se algumas morressem porque o médico decidira não aparecer? Como poderia ele viver com isso? Estas interrogações inclinavam-no inexoravelmente no sentido oposto. Contudo, quando se decidia a manter o plano, o rosto do comandante Trovão formava-se na sua mente e concluía que ninguém, a começar por ele próprio, compreenderia a sua ausência no funeral e no apoio à família.

"Vou ou não vou?"

Encontrava-se ele em pleno processo de indecisão sobre como proceder quando chegou ao alto da colina. Poderia ter prosseguido para casa, como de resto era a sua intenção inicial, mas que iria ali fazer se nem sequer Mímicas lá se encontrava? Optou assim no último instante por virar à esquerda e meteu-se pela estreita passagem entre o hospital e a farmácia.

Estacionou no pátio interior e abriu a porta para sair, mas logo que tirou uma perna do carro viu o rosto bolachudo da irmã Lúcia abeirar-se da janela do automóvel. Vinha ofegante.

"Doutor, tenemos um problema!"

"Então? Que se passa?"

"Vieram aí dois hombres da polícia para si."

O médico esboçou uma careta de estranheza.

"Polícia? Para mim?"

A freira espanhola confirmou com um curto aceno afirmativo.

"Quieren bablar consigo."

O médico lançou um olhar pensativo na direcção das urgências, onde permanecia o corpo de Trovão.

"A PSP deve querer a certidão de óbito."

Lúcia abanou a cabeça, enfática.

"Não era a PSP, doutor", afirmou. "Era a PIDE."A rapariga negra alçou os olhos brilhantes para Diogo e sorriu; tinha um rosto fresco e agradável, com linhas simétricas e dentes reluzentes. O

contacto dos olhos durou um segundo, instante breve mas suficientemente longo para o efeito desejado, e logo ela os baixou, fingindo concentrar-se no pilão. O furriel estacou junto à vedação e estudou-lhe o corpo curvilíneo.

A rapariga estava em tronco nu, pelo que o militar se pôs a apreciar-lhe os seios que saltitavam ao ritmo das batidas desferidas no pilão; eram seios voluptuosos, com os mamilos em pipeta, quase tão suculentos como os da Guidinha, a Lollobrigida de Espinho. Um novo olhar convidativo da negrinha deixou-o a rebentar de desejo; tinha de a possuir.

A rapariga mostrou-lhe de novo os dentes e Diogo devolveu- lhe o sorriso, deixando-a assim saber que ela lhe agradava. Gostaria de lhe falar, mas o arame farpado e o pilão eram uma barreira. Além do mais, tinha de se despachar porque precisava de se preparar para a missão dessa tarde. Voltou a levantar o saco e, lançando uma derradeira espreitadela aos seios apetitosos que balouçavam sobre o pilão, retomou o caminho ao longo da vedação que separava o posto do Chioco do vizinho aldeamento civil que o GPZ ali havia construído.

Quando chegou junto do portão, procurou o mainato no outro lado.

"Ó chefe!", chamou ao vê-lo sentado à entrada de uma palhota. "Já tens a farda pronta?"

O mainato olhou para ele e o rosto abriu-se.

"Sim, patrão."

O negro desapareceu na palhota e voltou logo a seguir com um tacho na mão esquerda e um camuflado embrulhado num plástico na outra. Estendeu a farda através da vedação e Diogo cheirou-a; vinha limpinha e bem passada. Sorriu aprovadora- mente e ainda pensou em vestir pelo menos a camisa, mas reconsiderou e embrulhou a farda num pano. Estava ali havia algumas semanas e já se habituara ao "fardamento" tradicional do Chioco: calções, sapatilhas, boné e tronco nu. O camuflado, lavado e passado pelo mainato, só seria usado quando saísse na patrulha dessa tarde; não valia a pena sujá-lo enquanto estivesse no aquartelamento.

Diogo apercebeu-se de que o mainato espreitava com um toque de impaciência o saco que trouxera; devia estar com fome. O furriel pegou no saco e estendeu-o por entre os arames da vedação.

"Hoje é um peixe maningue bom que veio lá da Metrópole", anunciou-lhe. "Nunca ouviste falar de bacalhau?"

O negro abriu o saco e despejou no seu tacho o bacalhau à Gomes de Sá que o militar lhe entregara.

"Não, senhor."

"Então tu e a tua família vão provar agora. Pus também aí dentro pão e uns rebuçados para os miúdos."

"Obrigado, patrão" O mainato hesitou. "Tem problema com um dos filhos, patrão."

Diogo soergueu a sobrancelha.

"Problema? Que problema?"

"Tem dor na barriga."

O furriel olhou de relance para a tenda do posto médico. A porta estava fechada.

"Eh, pá! A consulta para a população é amanhã. O miúdo não aguenta até lá?"

"Chora muito, patrão."

O tom do mainato transmitia alguma urgência. Diogo voltou a lançar um olhar para o posto médico. Uma vez por semana o gosto abria-se à população para uma consulta e isso seria já no dia seguinte, mas claro que estava sempre disponível para os casos mais urgentes. Seria aquele caso urgente? O olhar do mainato assim dava a entender, pelo que Diogo pegou na farda que lhe fora entregue e, antes de dar meia volta, assentiu com a cabeça.