"Se assim é, os aldeamentos não servem para nada!", concluiu. "Andamos com este esforço todo para construir os aldeamentos e arrebanhar as populações para as meter lá e no fim verificamos que eles estão todos contaminados. Então é melhor acabar com a porra dos aldeamentos!..."
"Não é bem assim", corrigiu Chaparro. "Com os aldeamentos ao menos temos a possibilidade de os controlar e de exercer uma acção psico que nos ajude a conquistar as populações."
"Como dar-lhes acesso ao posto médico?"
"Por exemplo, mas não só. Não te esqueças de que a generalidade das populações do distrito de Tete nos são adversas, ao contrário do que se passa por exemplo em Nampula. Têm por isso de ser controladas e os aldeamentos servem essa função às mil maravilhas." Deu mais uns passos, pensativo. "E é preciso não esquecer que há outras vantagens." Apontou para o guia que ia mostrando o caminho pela picada. "Este gajo, por exemplo. Perguntaste como sabia ele que o troço estava minado. Será que viu a mina? A resposta é não. O que se passou foi que, antes de sair com a nossa patrulha, o gajo foi perguntar aos turras quais os troços que devia evitar."
O furriel cravou os olhos nas costas do guia, exaiminando-o como se esperasse vê-lo de repente voltar-se com uma Kalashnikov nas mãos.
"A sério?"
"Não duvides", assentiu o militar. "O gajo pode não ser turra, mas é pelo menos amigo dos turras ou tem medo deles." Olhou de relance para trás, verificando a posição do resto do pelotão.
"E sabes que mais? Ainda bem! É aliás graças a isso que estamos a fazer a nossa patrulha em segurança!..."
Sem desviar os olhos do guia, Diogo mal conseguiia ocultar o pasmo.
"A minha alma está parva!"
Chaparro fez com as mãos um gesto de impotênciia e abriu o rosto num sorriso falsamente ingénuo.
"No mato, pá, o lema da tropa é muito simples, "Vive e deixa viver."
Prosseguiram o resto do caminho em silêncio. O que Chaparro acabara de contar deixara Diogo assombrado. Como era possível que tropa e guerrilheiros dormissem pacificamentte a poucas dezenas de metros uns dos outros? Sempre imaginarra a guerra de uma simplicidade transparente: os heróis de um lado e os bandidos do outro. Sempre que se encontravam deviam matar-se até os bons ganharem e os maus perderem. Simplles e justo. Aliás, bastava ver os filmes de guerra do John W/ayne para perceber como tudo era claro, os opostos distintamemte recortados, a branco e preto.
Branco e preto.
Como ali em áfrica. Brancos de um lado, pretos do outro. Só que a realidade, como constatava agora que mergulhara nela, não era assim tão linear. Para começar, metade das tropas brancas eram na verdade negras! Como o seu grupo de combate, aliás. Olhou para trás e observou os soldados que o seguiam em fila indiana pela picada. Uns eram brancos, outros mulatos e outros negros; tudo em proporções iguais e equilibradas, até parecia de propósito.
Depois havia o pormenor insólito de, pelo menos no caso dos aquartelamentos nos confins do mato, tropa e guerrilheiro conviverem no mesmo espaço. Pensou subitamente no seu mainato.
Seria ele um guerrilheiro? E porque não? O homem tinha uns trinta anos; ainda estava em idade de combater. Quem lhe garantia que o mainato, depois de lhe entregar a farda lavada e de comer o bacalhau à Gomes de Sá que lhe dera em pagamento pelo serviço e de ter levado o filho ao posto médico do aquartelamento para ser tratado pelo furriel enfermeiro Moscoso, não saía do aldeamento e ia buscar uma Kalashnikov escondida no mato e se punha também ele a brincar à guerra?
Os olhos fixaram-se de novo no negro esfarrapado que caminhava diante dele. Claro, havia também o problema do guia. Como poderia continuar a confiar nele? É verdade que haviam feito a patrulha em segurança, mas até que ponto é que...
Apercebeu-se de algo estranho do lado direito, entre os arbustos, e ergueu a mão para deter o pelotão. Os soldados ficaram alerta e Diogo saiu da picada, esforçando-se por não fazer barulho.
Aproximou-se de um tufo de capim alto e abriu uma nesga na vegetação, estudando o que lhe despertara a atenção.
"Que se passa?", sussurrou-lhe Chaparro ao ouvido.
Diogo apontou para uma área situada entre os arbustos e o camarada conseguiu vislumbrar uma cobertura de colmo em forma cónica.
"Uma palhota", segredou.
O furriel ergueu de novo a mão e fez sinal ao grupo de combate, indicando-lhe que o seguisse.
Com o coração a ribombar, acariciou com o dedo o gatilho da G3 e abriu caminho no capim, progredindo curvado e devagar, atento a qualquer movimento suspeito. Sentiu os homens atrás dele e isso deu-lhe confiança. Caminhou mais uns metros, tendo o cuidado de evitar pôr os pés em ramos secos e estaladiços, e acocorou-se junto ao último arbusto diante da palhota. Espreitou entre os galhos do arbusto e verificou que se tratava de duas cubatas de construção recente. Apercebeu-se então de movimento à porta de uma palhota e viu um desconhecido sair com um balde e acocorar-se diante de um buraco. Ia buscar água a um poço.
Diogo varreu o espaço em redor com o olhar, preocupado em assegurar-se de que os seus homens se encontravam em posição, e fez sinal para avançarem. O pelotão ergueu-se e cruzou a linha de arbustos com as G3 prontas a disparar, invadindo a clareira onde se encontravam as palhotas. O desconhecido que mergulhara o balde no poço olhou para trás e, com uma expressão de susto, apercebeu-se da presença dos soldados. Pôs de imediato as mãos no ar, deixando o balde tombar no poço.
Com aquele homem neutralizado, Diogo penetrou cautelosamente na primeira palhota e revistou-a; além de roupa e de alguma comida, nada mais encontrou. Ao voltar para fora observou
Chaparro a sair da segunda palhota com a arma apontada a um rapaz também de mãos erguidas.
Havia portanto duas pessoas por ali.
Presumindo que os suspeitos não falavam português, o furriel chamou o guia.
"Pergunta-lhes quem são e o que fazem aqui."
O guia voltou-se para o mais velho e, após uma troca de palavras em nhungué, traduziu as respostas.
"Chamam-se N'gume e Kashuda. Dizem que vivem aqui e estão a cuidar das machambas."
"Eles não sabem que não podem viver fora dos aldeamentos?"
"Dizem que têm fome, patrão", devolveu o guia sem sequer questionar o homem do balde. "Foi por isso que vieram tratar das machambas."
Diogo estudou-os da cabeça aos pés. Tinham um aspecto miserável, era um facto, mas não lhe pareciam esfaimados.
"Pede-lhes os documentos."
O guia traduziu a ordem em nhungué e o mais velho abanou a cabeça e respondeu.
"Não têm documentos, patrão. Dizem que perderam."
Diogo trocou um olhar com Chaparro, que acompanhara toda a conversa e abanava a cabeça com cepticismo. O furriel afastou-se dois passos e o camarada acompanhou-o.
"O que achas, Chaparro?"
"Vivem fora dos aldeamentos em palhotas de construção recente numa zona totalmente contaminada pelo in, estão em idade de combate e não têm documentos?", questionou o oficial miliciano com uma careta céptica. "Hmm... não sei!..."
"Serão turras?"
Chaparro lançou um novo olhar aos dois suspeitos, como se a expressão lhes assentasse à medida.
"Não tenho dúvidas."
"Mas não há prova disso."