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O alferes riu-se sem vontade.

"De que provas precisas, pá?", perguntou. "Queres uma folha azul de vinte e cinco linhas em que os gajos declarem por sua honra que são turras, com a assinatura reconhecida presencialmente pelo notário? Claro que não temos prova de nada! E então? Isso não impede que os gajos sejam turras, pois não?"

O comandante da patrulha aproximou-se do guia.

"Eles que nos acompanhem", ordenou. "Vão ser compulsivamente acantonados no aldeamento do Chioco."

Depois foi dar ordens aos seus homens, que até ali se limitavam a garantir a segurança ao perímetro, e dez minutos mais tarde o pelotão voltava à picada com os dois suspeitos. Atrás dos soldados, e conforme o procedimento normal em território hostil, as duas palhotas eram já piras de fogo, tochas cambaleantes que as chamas apunhalavam em golpes ininterruptos, a palha ardente a contorcer-se devagar numa sinfonia sinistra de estalidos.O mau humor do inspector Aniceto Silva era perceptível pelo semblante carregado e pela forma seca como acolheu o director do hospital. O

próprio José sentia-se abatido com a morte do comandante Trovão e presumiu, talvez com razão, que a má disposição do anfitrião e a convocatória para aquela reunião estavam relacionadas com o mesmo assunto.

"Que merda, isto", observou o médico, cabisbaixo. "Acabei de falar com a mulher..."

O inspector deixou-se cair no seu lugar habitual sem sequer convidar o visitante a sentar-se.

Mas José nem se apercebeu da descortesia e, movendo-se como um autómato, acomodou-se maquinalmente no sofá, uma expressão fatigada a obscurecer-lhe o olhar.

"É para que veja como isto está, doutor", observou Aniceto Silva. "Eu bem lhe digo que as coisas andam a piorar. Os turras já atacam em toda a parte. Cruzaram o Zambeze, passaram para o Sul do distrito e noutro dia, ao fim destes oito anos de guerra, lançaram o primeiro ataque em Manica e Sofala. Está a ver isto? Estamos em 1972 e os gajos já ameaçam Vila Pery e a Beira!"Abanou a cabeça e olhou para a palma da mão esquerda, fechando-a com um movimento rápido. "Tivemos a guerra quase ganha, caraças! Agora a coisa ameaça descontrolar-se."

O médico lançou-lhe um olhar provocador.

"E porquê, ó inspector?", perguntou em tom de desafio. "Porquê?"

"Porque não trabalhámos de forma adequada as populações", retorquiu o chefe distrital da DGS.

Fez um gesto com a mão a indicar a sua secretária. "Ainda há pouco terminei um relatório que vou mandar para Lourenço Marques. Em Nampula conseguimos pôr os macuas do nosso lado, mas aqui não foi feito nenhum trabalho aprofundado com as etnias. Para agravar as coisas, muitos dos nossos administradores não passam de uns broncos retrógrados que não têm a menor preocupação com o bem-estar das populações. Parecem reis absolutos e chegam a dispor dos pretos como se fossem escravos. Quem é que tolera uma coisa dessas? Depois ainda se admiram que a propaganda subversiva do in esteja a funcionar!"

José fitou o interlocutor com a surpresa desenhada na face. Nunca imaginara que um dia ouviria um elemento da DGS a defender os negros, mas isso acabara de acontecer.

"A sua análise parece-me correcta", arriscou. "Mas o senhor está em posição privilegiada de mudar essas coisas..."

O inspector da DGS suspirou e voltou a sacudir a cabeça com uma expressão de desânimo.

"As pessoas acham que, pelo simples facto de sermos da DGS, podemos fazer tudo. Mas isso não é bem assim. Não se mudam mentalidades por decreto e se calhar já vamos tarde." Ergueu um dedo, à laia de alerta. "Isto do Trovão, doutor, foi apenas um aviso. Amanhã podemos ser nós."

"Isto foi é um grande azar, inspector", disse o médico. "Se o Trovão, em vez de ir no carro com o administrador, tivesse mas é ficado no jipe!..."

"Se, se, se!", cortou o chefe distrital da DGS. "Independentemente de todos os 'ses' que se possam imaginar, o facto é que os turras estão a crescer e não estou a ver como podemos ter mão nisto. Qualquer dia põem-se a bombardear Tete."

O médico lançou-lhe um olhar agastado, reprovando aquela observação; parecia-lhe alarmista.

"Que exagero, inspector!"

"Acha que sim?"

"Claro que acho", retorquiu José sem hesitar. "Que eu saiba eles não atacam civis."

"E o carro do administrador da Angónia onde o Trovão ia era o quê?", atirou Aniceto Silva num tom sibilino. "Um tanque de guerra? Uma Berliet

O sarcasmo era ajustado, pensou José sombriamente. Lembrou-se que Trovão tinha de facto sido abatido num automóvel civil e isso constituía uma evolução perturbadora; por outro lado, não esquecia que a viatura, sendo civil, era do estado, o que de certo modo a tornava um alvo.

"Bem... a tropa aguenta isto."

O inspector da DGS soltou uma gargalhada sem humor.

"A tropa?", questionou com insolência. "Não me faça rir, doutor!..."

O médico dissera-o por dizer, mas ficou surpreendido com o derrotismo que pressentia no homem mais informado do distrito. Se o inspector se sentia desanimado, boas razões teria para estar assim.

"Porquê? Acha que não?"

"Acho."

"Não diga isso, inspector", exclamou José. "Ainda noutro dia recebi um telegrama de uma irmã minha a dizer que o filho foi colocado num quartel aqui no distrito de Tete, não sei bem onde. Se o senhor me diz que a tropa não aguenta isto..."

"O seu sobrinho é miliciano ou está nas tropas especiais?"

"E miliciano, creio eu."

"Então não tem de se preocupar com os turras", observou o responsável da DGS com acidez. "O

problema dele vão ser as gajas e as Laurentinas."

"Porque diz isso?"

Aniceto Silva comprimiu os lábios finos e olhou de soslaio para o interlocutor, como se ponderasse até onde deveria ir a liberdade das suas observações.

"Ó doutor, a nossa tropa é uma vergonha", desabafou por fim, a boca deformada numa expressão de desprezo. "Muitos soldados têm comportamentos arbitrários com os pretos e as pretas. Às vezes andam bêbados, outras vezes metem-se em tiroteios disparatados e até já os vi a desrespeitarem os superiores sem qualquer sanção disciplinar. Uma vergonha!" Inclinou-se no seu lugar, como se quisesse confidenciar algo. "Noutro dia o Kaúlza veio cá inspeccionar uns quartéis.

Sabe o que aconteceu? Os chefes militares deram ordens apressadas aos soldados para vestirem o camuflado e irem dar umas voltas no mato ali perto. O Kaúlza veio, pareceu-lhe que estava tudo bem, foi-se embora e a tropa voltou do mato para a pândega. É esta a tropa que aguenta isto?"

Voltou a rir sem humor. "Não brinque comigo!" Recostou-se no seu assento e cruzou a perna, balouçando-a nervosamente. "O estado de espírito da tropa miliciana vai de mal a pior, doutor. Os nossos homens fazem a guerra de braços caídos e só querem é andar nas putas que frequentam ali o... como é que se chama o raio da boîte?"

"O Maxim."

"Isso, o Maxim! E nas raras ocasiões em que vão para o mato, não só não procuram o inimigo como fazem todos os possíveis por não o encontrar!" Abanou insistentemente a cabeça. "Não, doutor. A sua irmã não tem de se preocupar com o filho."

"Não sei se será bem assim", corrigiu José. "Quando ando a viajar por aí chegam-me informações frequentes de combates. Parece-me sinal inequívoco de que a tropa está activa."

O inspector ergueu dois dedos, como se fizesse o V de vitória, mas sem a convicção dos vencedores.

"Isso só podem ser duas coisas", disse. "Ou são os turras a emboscar a tropa ou são os comandos ou os pára-quedistas ou os grupos especiais de tropas negras atrás dos turras. As forças especiais são as únicas que se mostram activas na perseguição ao inimigo. Os milicianos, esses, querem é tratar da sua vidinha e que ninguém os chateie!... Tome nota do que lhe digo: nesta guerra os comandos, os páras e os GE andam atrás dos turras, os turras andam atrás da tropa e a tropa anda atrás das gajas. E assim que se combate no Ultramar."