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"O senhor fala como se a guerra estivesse perdida..."

"Perdida, não direi. Digamos que está ganha em Angola, perdida na Guiné e empatada em Moçambique."

Uma espreitadela discreta ao relógio despertou José para as horas. Já se fazia tarde, a guerra não era a sua especialidade e tinha ainda decisões a tomar sobre as operações dessa semana do Serviço Médico Aéreo.

"Bem, tenho de ir andando", disse, pondo-se de pé. "Gostaria apenas de..."

"Tenha calma, doutor", interrompeu-o Aniceto Silva. "Sente- se! Ainda temos coisas para conversar."

O chefe distrital da DGS manteve-se quieto no seu lugar, sinal claro de que não dera a reunião por concluída. José lembrou-se de que tinha também uns assuntos pendentes para resolver com o inspector, pelo que voltou ao seu lugar.

"Então o que se passa?", perguntou. "Julguei que me tinha chamado para falarmos sobre o Trovão..."

Aniceto Silva olhou para os dedos da mão, como se inspecionasse as unhas, e afinou a voz.

"Mandei que o chamassem por outro motivo, doutor", disse num tom monocórdico, quase formal. "Fui informado de que o senhor colocou uma criança negra num quarto particular do hospital, em vez de a meter na enfermaria geral." Levantou os olhos e cravou-os no médico. "Pode explicar-me porquê?"

José ficou um longo momento boquiaberto, tentando descortinar algum sinal escondido por detrás daquelas palavras ou no tom com que elas tinham sido formuladas.

"O senhor está a brincar?", perguntou por fim.

"Estou a falar muito a sério", insistiu o homem da DGS com um semblante grave. "Pode explicar-me os motivos que o levaram a internar uma criança negra num quarto particular? Parece que até a mãe dela também lá ficou!..."

A pergunta era mesmo a sério, percebeu o director do hospital. Respirou fundo, respingando no seu interior as sobras de paciência até amealhar algumas migalhas. Havia sido um dia para esquecer e a última coisa de que precisava era ter de justificar perante a DGS uma decisão tão insignificante como aquela.

"A criança é filha de um oficial do exército", começou por explicar. "Apanhou varíola e encontra-se num estado muito grave, dado tratar-se de uma patologia infecto-contagiosa que carece de cuidados específicos. É muito raro os latentes sobreviverem à varíola, mas estamos a fazer os possíveis para salvar a menina. Considerei que um quarto particular era o local ideal para lidar com este caso tão sério e com tão elevada taxa de mortalidade." Inclinou a cabeça, deixando a irritação espreitar por entre as suas palavras. "Não sabia que existia uma proibição de internar crianças negras em quartos particulares do nosso hospital, nem que um assunto desta dimensão pudesse preocupar a PIDE."

Aniceto Silva voltou a mirar as unhas da mão esquerda.

"A DGS, caro doutor Branco, preocupa-se com tudo", sentenciou. "Não existe nenhuma proibição de internar crianças negras nos quartos particulares." Mais uma vez levantou os olhos para o seu interlocutor, como se o que tinha dito enquanto contemplava as unhas não passasse de um preâmbulo. "O que existe é a proibição de exercer funções públicas sem bom senso."

"Desculpe, mas não percebo onde pretende chegar", devolveu José, já agastado. "Não vejo em que é que meter a filha de um oficial num quarto particular do hospital constitui falta de bom senso. Gostaria que me explicasse isso."

"Não tenho de explicar nada a ninguém", cortou o inspector num tom subitamente ríspido.

"Tenho é de perceber o que se passa na zona sob a minha jurisdição e as intenções com que certas coisas são feitas, mais nada."

O director do hospital sentia-se suficientemente enervado para manter o registo de protesto, mas reconsiderou a sua postura. Fosse ou não do seu agrado, a realidade é que precisava de Aniceto Silva e não se podia dar ao luxo de o hostilizar abertamente. Se ia prosseguir aquela conversa, percebeu, tinha de o fazer noutro tom e de uma forma mais inteligente.

"Naturalmente que entendo que tudo isto faz parte do seu trabalho", disse de uma forma quase descontraída, como se tudo aquilo fosse muito razoável. "Mas há uma coisa que não estou a perceber. Ainda há pouco o ouvi criticar os administradores déspotas e defender os direitos dos indígenas. Como é que essa posição encaixa nas suas dúvidas sobre o internamento de uma criança negra num quarto particular do hospital?"

A sombra de um sorriso cruzou o rosto tenso do homem da DGS.

"É muito simples", retorquiu. "Devemos tratar bem os pretos, dar-lhes educação e saúde, pagar-lhes salários iguais por serviços iguais e contribuir para o seu bem-estar económico e social."

Ergueu a mão, como um polícia sinaleiro a mandar parar o trânsito. "Mas, alto lá, não devemos exagerar. Tudo tem o seu limite, a partir do qual as coisas se tornam perniciosas. Um preto com excesso de educação, por exemplo, começa logo com ideias de expulsar os brancos e coisa e tal. Isso não podemos tolerar, como é evidente."

"Como o doutor Rouco, quer o senhor dizer?"

"Nem mais! Como o seu amigo Rouco."

"Não sei se sabe, mas o próprio Salazar convidou o doutor Rouco para ser deputado à Assembleia Nacional. Portanto não há-de ser tão mau quanto isso!..."

Aniceto Silva encolheu os ombros, como se a novidade lhe fosse indiferente.

"O nosso defunto presidente do Conselho lá teria as suas razões, que não me cabe a mim comentar", disse. "O facto é que o seu amigo Rouco se meteu com elementos subversivos, foi detido e depois enviado para a Machava e a seguir para Peniche. Que eu saiba, só agora o libertaram e deixaram regressar a Moçambique, mas com residência fixa na Beira, o que demonstra que continua a ser tido como perigoso. Ele é a prova viva de que um preto com excesso de educação se torna uma ameaça."

O médico teve de conter a irritação. Sabia muito bem qual a situação do amigo, com quem se correspondia para a Beira, e percebeu que aquela conversa não o iria levar a lado nenhum. Além disso tinha ainda uma outra questão a resolver e, embora o estado de espírito do seu interlocutor não fosse talvez o mais adequado, não a podia adiar.

"O inspector, já que estamos com a mão na massa, gostava de lhe falar sobre um outro problema", disse. "Como sabe, o senhor mandou deter dois enfermeiros meus."

Aniceto Silva sorriu.

"Estava a ver que não levantava esse assunto", observou, tirando do bolso das calças um papel com anotações que consultou. "Imagino que se esteja a referir ao Mendonça e ao... Mabunda."

"Esses mesmos", confirmou o director do hospital. "Estamos com falta de pessoal e precisava deles ainda hoje."

O inspector fez um gesto rápido com o papel na mão, sacudindo-o no ar.

"Lá está, é o que eu digo!", exclamou. "Dá-se demasiada educação a esta malta e começam logo a conspirar contra nós." Apontou para o primeiro nome anotado no papel. "Este enfermeiro Mendonça anda aí com um grupinho a bichanar por todos os cantos. Pensam que não os topo, mas a mim não me enganam."

"O inspector, estão apenas a estudar em horário pós-laboral. Deixe lá os moços!..."

"Estudar, dizem eles? Estão é a conspirar!..."

"Mas pegaram em armas? Mataram alguém?" Esboçou uma expressão de desinteresse. "Então deixe-os andar, enquanto falarem não fazem mal a ninguém. Aliás, o enfermeiro Mendonça tem até salvo maningue soldados que vêm todos partidos lá do mato. A mim não me interessa o que eles dizem, interessa-me o que fazem. E o que o Mendonça fez no hospital não tem preço."