O chefe distrital da DGS soltou um grunhido.
"Está bem, eu liberto os gajos", assentiu, quase contrafeito. "Mas diga ao Mendonça que tenha juízo, ouviu? Estou farto dos comentários que ele anda a fazer contra nós."
"E o enfermeiro Mabunda?"
"Esse foi detido só para que se mantenha em sentido, por causa dos filhos turras. Pode levá-lo também."
O médico espiou de novo o relógio, mais para sinalizar a pressa do que para saber as horas.
"Bem, então se calhar é melhor entregar-me já essa malta para eu ir andando, não é verdade?"
Levantaram-se ambos e Aniceto Silva deu ordem de soltura dos dois enfermeiros e dos três amigos de Mendonça que com ele estudavam à noite. O director do hospital e o chefe distrital da DGS dirigiram-se para a porta do edifício, onde ficaram a aguardar que os detidos tratassem das derradeiras formalidades e se reunissem a eles.
"Sabe o que mais me incomoda no meio disto tudo?", observou o inspector Silva enquanto esperava. "E que no fim a medalha vai ser de lata. De lata!"
"Que quer dizer com isso?"
O polícia fez um gesto na direcção do corredor ainda vazio.
"Olhe para estes gajos que estamos agora a libertar. Com as aberturas que o nosso novo presidente do Conselho tem ensaiado com a oposição, já vi que um dia tipos como estes vão tomar conta do poder. Quando isso acontecer, caro doutor Branco, vão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para apagar da memória colectiva o que de bom este regime fez pelo país. Tudo." Esboçou um trejeito agastado com a boca. "Se o doutor ouvisse os comunistas que eu já interroguei, os mesmos comunistas que andam a contaminar a cabeça destes coitados, até lhe dava vómitos."
Ergueu o dedo, empolgando-se. "Vómitos, digo-lhe eu!"
"Porquê? Que dizem eles?"
"Oh, nem queira saber: os maiores disparates!"
"Mas dizem o quê?"
"Olhe, que o regime quer o país pobre e subdesenvolvido, veja só! E dizem que o regime deseja manter as pessoas analfabetas e sem educação, que o regime fechou Portugal à Europa e ao mundo... essas aleivosias todas." Cravou os olhos no índico. "Repare bem, doutor. Desde os anos 50
que Portugal conheceu o maior crescimento económico da sua história. Com a monarquia e a República, o nosso país andou século e meio a atrasar- se em relação às nações mais desenvolvidas e tinha um défice orçamental crónico. Veio Salazar, as contas equilibraram-se e a economia disparou. Baixaram-se as taxas de juro, deu-se confiança aos empresários, aumentou-se a poupança e os resultados estão à vista. O crescimento económico tem andado perto dos sete por cento, a mesma taxa do Japão, e os salários reais cresceram seis por cento. São números fantásticos, doutor!
Ainda ontem me chegaram aqui as estatísticas e elas parecem-me elucidativas." Meteu a mão ao bolso e retirou um papelinho, que desdobrou. "Olhe, até tomei nota. Veja aqui! Em 1950 o nosso PIB per capita correspondia a apenas trinta e cinco por cento do PIB per capita dos países mais ricos do mundo e este ano já representa quase cinquenta e oito por cento do PIB per capita desses países, o que significa que nos estamos a aproximar das nações mais desenvolvidas. Não é extraordinário?
Acha que isto é política de quem quer manter o país subdesenvolvido?"
"Deixe lá ver isso."
O homem da DGS entregou o papel ao seu interlocutor, que passou os olhos pelas estatísticas rabiscadas a lápis.
"Além do mais, investiu-se na qualificação da mão-de-obra, que era desqualificada no tempo da República, como o senhor bem sabe. O regime expandiu as escolas primárias e secundárias, instalou postos escolares em todas as aldeias, recrutou regentes escolares para fazer frente à falta de professores, apostou nos liceus privados na província e agora também nos liceus públicos, investiu no ensino técnico... eu sei lá! A realidade é que em 1930 a taxa de analfabetismo em Portugal era de sessenta por cento e agora está reduzida a vinte e cinco por cento. Acha que isto é obra de quem tenciona manter o país ignorante e sem educação? Francamente! E como é possível dizer que estamos fechados à Europa e ao mundo quando aderimos à EFTA e à OECE e eliminámos a maior parte das restrições quantitativas ao comércio externo com a Europa ocidental e assinámos este ano um acordo comercial com a CEE? Como é possível dizer isso? E como..."
"Eles vêm aí", interrompeu-o José.
Os dois enfermeiros e os seus três amigos apareceram de facto no corredor, as formalidades já cumpridas. O inspector fez um gesto de desdém na direcção do grupo.
"O p'ra eles! Quando um dia esta malta tomar o poder vai dizer que queríamos manter toda a gente pobre e ignorante e Portugal isolado do mundo. Nós, que endireitámos o país e investimos nas colónias! E sabe qual é o problema? E que essas mentiras, caro doutor, vão tornar-se verdades indiscutíveis."
O director do hospital nada disse. Foi buscar o carro e acolheu os enfermeiros, deixando os outros três seguir a pé. Quando se preparava para arrancar, o inspector Silva assomou à janela do automóvel e acenou em direcção aos homens que acabara de libertar.
"Juizinho, hem?"A brisa gerada pelo movimento da Berliet bafejava quente e seca, mas sempre compensava o calor ardente que incendiava a manhã. O céu abria-se num imenso azul sem nuvens, mas quando os veículos militares desembocaram na estrada principal que vinha de Vila Pery e viraram à esquerda Diogo apercebeu-se de uma estranha nuvem amarelada a pairar sobre o horizonte.
"Tete", esclareceu Chaparro.
A informação deixou o furriel intrigado. Examinou a nuvem com atenção, interrogando-se sobre se o calor não teria provocado uma miragem e transformado o casario na ilusão de uma nuvem; já ouvira dizer que esse tipo de alucinação era comum em zonas muito quentes.
"Tens a certeza que aquilo é Tete?", perguntou. "Tem graça, a mim parece-me uma nuvem a flutuar sobre o mato!..."
A observação foi acolhida com uma gargalhada.
"Aquilo é uma nuvem", disse Chaparro. "Uma nuvem de poeira que paira em permanência sobre Tete."
"Poeira?""A maior parte das ruas da cidade são em terra batida, pá. Quase não há asfalto. Os carros passam e levantam pó e a poeira fica o dia inteiro a planar no céu."
A coluna entrou nas ruas de Tete no final da manhã e Diogo ficou com a impressão de circular numa povoação do faroeste, o que o deixou estranhamente confortado; era como se estivesse no Chioco, mas em ponto grande e em condições de segurança.
As viaturas militares misturavam-se com as civis, umas e outras cobertas de pó, e as balalaicas dos brancos amalgamavam-se com os trajos coloridos dos negros e o verde-azeitona das fardas militares usadas por homens de todas as cores. Viu aramistas, como esperava, mas também boinas castanhas das tropas regulares, como a sua, a cruzarem-se nas ruas com boinas vermelhas dos comandos, boinas azuis dos pára-quedistas e boinas amarelas dos grupos especiais africanos.
Desprezava os aramistas, mas com as outras forças o sentimento dominante era de rivalidade. Os comandos em particular não o deixavam indiferente; achava que tinham a mania que eram os melhores e suspeitava que o seriam de facto.
A coluna proveniente do Chioco imobilizou-se num cruzamento dominado por um grande edifício, identificado no topo como o Hotel Zambeze, e Diogo, com a mão na cabeça para não deixar cair a boina castanha, saltou para o passeio e acenou aos camaradas que permaneceram na