Berliet.
"Até logo!"
Perguntou pela direcção do hospital e subiu a rua até chegar ao alto da colina. Nunca havia ali estado, mas a imagem da fachada do hospital diante da pequena rotunda onde desembocava a rua confortou-lhe o coração. Era pois ali que trabalhava o irmão da mãe. Entrou no edifício e, depois de questionar uma enfermeira, foi enviado para uma porta no fundo do corredor.
"Olá, tio Zé!"
José Branco atendia um paciente e desviou o olhar para identificar quem o interpelara. Levou um longo segundo a associar a cabeça do militar que lhe espreitava pela porta do gabinete com a saudação que acabara de escutar e a perceber que aquele furriel era o seu sobrinho.
"Diogo!", exclamou por fim. "Estava a ver que não me vinhas cá visitar!"
O médico interrompeu a consulta para acolher o recém-chegado. A última vez que o tinha visto fora quinze anos antes, era Diogo ainda um miúdo. A irmã e a família haviam partido logo a seguir para Angola e, quando regressaram à Metfópole já ele estava a viver em Moçambique. Tinha recebido fotografias dos cinco sobrinhos, claro, mas eram apenas imagens de garotos sorridentes com os joelhos esfolados, sem nada que os singularizasse. Se se tivesse cruzado com Diogo na rua não teria olhado duas vezes; não passava de mais um militar que ali fora parar.
"Olha lá, já tens idade para um whiskyzinho, não tens?", perguntou-lhe enquanto o puxava para uma porta diante do gabinete.
"Acho que sim!...", riu-se Diogo.
José Branco abriu a porta e o furriel sentiu o ambiente fresco e retemperador de um ar condicionado acariciar-lhe o rosto.
"Então anda aqui ao bar", convidou-o. "Vou meter gelo. Queres com soda ou com água?"
"Água."
O bar era um cubículo pequeno, mas fresco. Tinha um balcão a rodear uma estante cheia de garrafas e umas cadeiras e mesas espalhadas em redor, todas vazias àquela hora do dia. O aparelho de ar condicionado roncava sem cessar e Diogo acomodou-se junto a ele para melhor lhe acolher a frescura; havia já muito tempo que não sentia tanto conforto. Existia algo de tonificante naquele lugar, constatou, enquanto observava o tio a agarrar uma garrafa red label de Johnny Walker e a encher um copo; depois viu-o misturar água, deitar dois cubos de gelo e estender-lhe o whisky.
"Ficas aqui refastelado enquanto eu acabo as consultas, está bem?" O médico espreitou o grosso relógio de aviador, cheio de ponteiros. "Levo meia hora, mais ou menos. Se precisares de alguma coisa, vai-me bater à porta." Deu meia volta para regressar à consulta, mas hesitou, lembrando-se de mais um pormenor. "Se te habituares demasiado ao ar condicionado e começares a sentir calor, fazes como toda a gente aqui em Tete: sais do bar e vens cá para fora um minutinho. Quando reentrares vais achar que esse fresquinho é uma maravilha!..."
Diogo riu-se com a sugestão.
"Fique descansado."
O tio fez de novo tenção de sair mas deteve-se ainda mais uma vez e ergueu o dedo, como se no meio daquilo tudo se tivesse esquecido de dizer o mais importante.
"Ah!", exclamou. "O almoço é lá em casa."
A vista revelou-se de uma imponência desconcertante. A casa do tio situava-se no alto da colina, ao lado do hospital, e parecia uma tribuna assente sobre o rio. O caudal largo e tranquilo do Zambeze deslizava majestoso pela planície, movendo-se quase com sobranceria pela larga curva que contornava a cidade, como se a abraçasse; o espelho de água era apenas cortado por uma longa e estreita ilha fluvial, parecia que uma adaga rasgava o centro do rio mesmo diante da colina. À
direita, dando ares de uma construção em miniatura ou da Ponte Salazar em ponto pequeno, eram visíveis os pilares e o tabuleiro da Ponte Marcello Caetano, já erguida para substituir o histórico batelão. Ao fundo, para lá do Zambeze, estendia-se a margem amarelo-torrada seca do Matundo.
"E de cortar a respiração, não é?"
A voz feminina obrigou Diogo a virar-se. Caminhando pelo jardim com um copo na mão, o corpo a bambolear num vestido estreito mas de saia larga, vinha uma rapariga de tez morena.
Tinha o cabelo negro a pousar-lhe nos ombros ou a descair-lhe pelas costas; os olhos eram de um castanho-claro achocolatado e ostentava um sorriso tão quente e luminoso que Diogo teve a sensação distinta de que a recém-chegada seria capaz de derreter o mais frio dos homens.
Observando-a como se estivesse hipnotizado, o furriel tentou destrinçar-lhe a raça, mas percebeu que a rapariga escapava a qualquer categorização; os lábios espessos eram de negra, o nariz estreito de branca e o longo cabelo liso e brilhante de indiana, os olhos uma mistura de chocolate claro. A única coisa certa na sua figura harmoniosa era a beleza, feita de um exotismo raro e estranhamente inebriante.
"Pois é", concordou Diogo, quase ofuscado por aquela presença. "Esta vista é... deslumbrante."
A rapariga esticou o pescoço e ofereceu-lhe a face para o beijo.
"Eu sou a Sheila", apresentou-se. "Vim agora de Lourenço Marques e parece que vamos almoçar juntos."
A novidade encheu Diogo de um enorme bem-estar. Encostou-lhe o rosto para a beijar e constatou que ela tinha uma bochecha quente e macia. O que nela mais o perturbava, porém, era o sorriso. Já vira muitas mulheres bonitas na vida, em particular depois dos jogos de voleibol que agora pareciam uma recordação difusa, mas não se lembrava de alguma vez ter conhecido alguém que tivesse um sorriso tão belo como aquele.
Trocaram palavras de circunstância. A conversa, todavia, arrancou aos solavancos e os silêncios embaraçosos intrometeram-se nas frases entrecortadas.
"O senhor é sobrinho do doutor Branco?"
"Sou. Ele é meu tio."
Amaldiçoou-se em silêncio pela tolice da réplica, um mero eco tonto do que ela acabara de dizer, mas a verdade é que a rapariga o intimidava tanto que lhe anulava o discernimento. Teve vontade de praguejar, como quando nos seus tempos de jogador falhava um remate fácil sobre a rede, mas dominou-se. Sentindo-se um adolescente e temendo soltar mais asneiras, calou-se.
Voltaram-se ambos para o rio como se da água pudesse vir uma resposta para aquele impasse sem jeito. Não veio. Não suportando mais o silêncio desconfortável, fez um esforço para inventar um tema de conversa.
"O que está a beber?", perguntou, fazendo sinal para o copo que ela tinha na mão.
"Capilé."
Diogo assentiu com a cabeça e quis opinar qualquer coisa a Propósito do assunto, mas nada lhe ocorreu; era como se tivesse a mente em branco. Que observações argutas haveria a fazer em torno do capilé? Como se alimenta uma conversa sobre esse tema? Haveria alguém capaz de sustentar um diálogo inteligente com uma rapariga bonita a respeito daquela bebida? Sentiu-se embatucar de novo e, mais uma vez embaraçado e cheio de vontade de se autofla- gelar pela sua estupidez, voltou a fixar os olhos no Zambeze.
Um ponto negro perfazia uma curva no céu, acima do rio, e voltava -se na direcção da casa onde se encontravam. Diogo distinguiu as formas arredondadas familiares do Alouette III, o helicóp- te<-o da Força Aérea que se aproximava com um zumbido surdo.
"Olha um heli", disse, apontando para o aparelho voador ela já avistara também. "Deve vir de uma operação."
"Não", corrigiu Sheila. "Traz feridos."
Diogo lançou-lhe um olhar interrogador.
"Como sabe?"
"Ora, porque o hospital é aqui e o helicóptero vem nesta direcção!...", disse. "Todos os dias é isto."