O soldado teve de novo vontade de se esmurrar a ele mesmo. Ataria parvo ou quê? Espreitou os edifícios erguidos uns q u i nhentos metros à esquerda da casa do tio, também sobre a colina. O
mais próximo era a farmácia e atrás dela estava o hospital. Parecia por demais evidente que o
Alouette, se vinha naquela direcção, teria de trazer feridos. Como podia mostrar-se tao estúpido?
Pior ainda, o que iria pensar a rapariga? Receou tecer mais comentários disparatados e preferiu calar-se de vez, ficando a observar o helicóptero na sua manobra de aproximação ao hospital. O
fragor das hélices enchia aliás o ar com batidas surdas, o que lhe pareceu conveniente porque impossibilitava a conversa e o poupava a mais tolices.
'"Vamos comer?"
A pergunta do tio, lançada da janela, salvou a situação. Diogo e Sheila sorriram um para o outro, aliviados, e entraram na casa.
Acolheu-os a frescura dos aparelhos de ar condicionado e sem mais delongas sentaram-se à mesa para a refeição.
"Este almoço tinha sido marcado para assinalar o facto de termos ganho uma nova enfermeira", disse José Branco, inclinando a cabeça na direcção da rapariga. "Sheila, espero que não se importe por também ter convidado o meu sobrinho."
"Com certeza que não."
O médico virou-se para Diogo.
"A Sheila passou os últimos dois anos em Lourenço Marques", revelou. "Foi lá tirar o curso de Enfermagem. Regressou ontem a Tete e agora vai dar-me uma mãozinha no hospital." Olhou para ela. "Não é verdade, Sheila?"
"Iá. Estou cá para trabalhar, doutor!"
"Temos falta de pessoal moçambicano e isso dificulta por vezes o contacto com as populações", explicou ao sobrinho. "A Sheila fala nhungué e vai-nos ser maningue preciosa."
Mimicas entrou nessa altura na sala. Atrás dela vinha Ernesto, impecavelmente fardado de branco, a segurar uma travessa com uma grande terrina fumegante. Um aroma delicioso de especiarias encheu de imediato o ar.
"Espero que gostes de comida indiana, Diogo", disse a anfitriã, ocupando o seu lugar. "Como a Sheila vinha cá decidi coisar um caril de cabrito." Sentiu a fragrância condimentada do caril.
"Hmm, está uma delícia!" Inclinou a cabeça, como se fizesse uma confidência. "Não é para me gabar, mas tenho dedo para a cozinha!..."
"Foi a tia que cozinhou?", admirou-se Diogo.
Mimicas pareceu surpreendida com a pergunta e pousou a mão no braço do empregado, que já servia o caril.
"Quer dizer, quem coisou foi aqui o Ernesto", admitiu ela. "Mas seguiu as minhas indicações e fui eu que deitei os condimentos. E que, não sei se já vos disse, tenho dedo para a cozinha." Voltou a inclinar a cabeça no seu gesto característico. "Não é para me gabar!"
O caril pareceu saboroso a todos, excepto a Diogo, que sentiu um ardor infernal incendiar-lhe a boca mal trincou o primeiro pedaço de carne. Com a vista turva, as lágrimas a inundarem-lhe os olhos e muco viscoso a jorrar-lhe pelas narinas, engoliu um copo inteiro de água num esforço desesperado para apagar as chamas que o caril ateara.
As dificuldades do rapaz desencadearam gargalhadas na sala de jantar.
"Então?", quis saber Sheila com um sorriso malicioso. "São lágrimas de saudade?"
Com o rosto mergulhado num guardanapo, Diogo limpou os olhos, assoou-se e respirou fundo, aliviado por ter enfim estancado a erupção.
"Caramba!", bufou. "O que é isto? Nunca tinha provado uma coisa assim!..."
A observação fez Mimicas empertigar-se.
"O quê? Não me digas que não gostas!..."
"Gosto, gosto!", apressou-se o convidado a esclarecer, limpando novas lágrimas que lhe germinavam do canto dos olhos. "Não estou é habituado a comida tão picante."
"Aqui em Moçambique é normal", esclareceu Sheila. "Mas vocês, na Metrópole, não costumam comer piripiri, pois não?"
A conversa divagou pela comida, com Sheila e Mimicas a enumerarem as delícias da gastronomia moçambicana, começando pela galinha à cafrial e terminando nos caranguejos da Beira, "tão bons que parecem doces". Por falar em doces, a conversa desviou-se para a bebinca, a sobremesa goesa que era, no dizer da anfitriã, "especialidade aqui da nossa Sheila", elogio retribuído pela enfermeira, que muito gabou o pudim Araújo da sua anfitriã, "obra-prima do paladar".
"Não é para me gabar", pavoneou-se Mimicas com orgulho, "mas o meu pudim Araújo é mesmo uma maravilha!"
"Lá isso é, doutora", concordou Sheila. "Nunca provei doce tão bom. Uma especialidade!"
Mímicas olhou para o prato vazio diante dela e abanou a cabeça com uma expressão desgostosa.
"Ai, comi de mais", constatou num queixume. "Estou tão arrependida..."
José Branco e o sobrinho deixaram as mulheres fazer as despesas da conversa, discorrendo ambas sobre receitas "de adoçar o dente", mas o médico foi rápido a aproveitar a primeira pausa para inquirir Diogo sobre as condições de vida no CíTioco.
"Se calhar é melhor eu dar uma palavrinha ao coronel Varela", sugeriu. "Como novo governador de Tete e comandante da ZOT, ele tem plenos poderes para te transferir. Vou estar amanhã com ele e..."
Diogo ergueu a mão para travar o tio.
"Espere aí", disse. "Transferir-me para onde?"
"Ora, para um posto menos perigoso", esclareceu, quase admirado por ter de expor a evidência.
"A tua mãe escreveu-me noutro dia e, como deves calcular, anda raladíssima contigo. Não é fácil ter um filho na guerra."
"Saio do Chioco e torno-me o quê? Um aramista?"
A expressão suscitou um olhar inquisitivo do médico.
"Aramista? Não estou a perceber..."
"Um aramista é um desses militares que dizem que estão na guerra mas não saem dos gabinetes", esclareceu, quase a sentir- se um veterano. "O tio nunca os viu por aí? Andam impecavelmente fardados e com a botas a brilhar de tão bem engraxadas, mas não se aventuram para lá de nenhum perímetro que não esteja protegido por arame farpado. São os aramistas, a vergonha da tropa. Se eu sair do Chioco será para quê? Para abandonar os meus camaradas e tornar-me um aramista?" Abanou a cabeça. "Não, obrigado."
José Branco fitou o sobrinho com sentimentos ambivalentes. Por um lado queria-o fora de perigo, para segurança dele e descanso da mãe, e sentia a responsabilidade e o dever de o proteger; por outro, vislumbrou em Diogo uma variedade diferente do mesmo idealismo que o movia a ele próprio e isso fê-lo sentir uma ponta de orgulho. Quis dar-lhe uma palavra de apreço. Não era todos os dias que via um militar recusar a possibilidade de uma transferência para uma posição mais confortável, mas não era homem para verbalizar sentimentos e, sem saber lidar com o assunto, preferiu mudar de tema de conversa.
"Olha lá", disse para aligeirar o ambiente, "não tens vergonha de ter vestido a camisola do Porto?"Caminhavam os dois descontraidamente pela rua curva que descia do hospital em direcção à Baixa. Era o início da tarde e fazia um calor infernal, mas nem Diogo nem Sheila pareciam incomodados com isso; ele esforçava-se por se esticar e encher o peito, de modo a sublinhar o porte atlético, e ela ia passando as mãos pelo longo cabelo negro, como se o penteasse com os dedos.
"É uma pena não ter carro para lhe dar uma boleia", descul- pou-se Diogo. "A única coisa ao meu dispor é uma Berliet, mas não me parece viatura adequada para transportar uma donzela."
Riram-se os dois, cada um a fantasiar a cena à sua maneira; o furriel imaginava a cara dos camaradas ao vê-lo passear com aquela beldade na viatura militar, Sheila desenhava na mente o espanto dos vizinhos se ela chegasse a casa de Berliet.