O que estava feito, estava feito. Agora, era hora de continuar em frente, reagrupar, reconstruir, começar de novo. Olhar para trás era tolice. Olhar para a frente, com pessimismo e desesperança, era covardia.
— Terminou? — perguntou Siferra, entrando no refeitório. — Sei que a comida não é nenhuma maravilha, mas é melhor do que comer graben.
— Eu não posso julgar. Nunca comi graben.
— Pois não perdeu grande coisa. Venha. Vou mostrar o seu quarto.
Era um cubículo com o teto muito baixo e com mobília escassa: uma cama, uma pia, uma lâmpada no teto e outra no chão. Espalhados no chão, em um canto do quarto, estavam alguns livros e jornais, deixados pela pessoa que ocupara o aposento na noite do eclipse. Theremon viu um exemplar da Crônica aberto na página de sua coluna e fez uma careta. Era um dos seus últimos trabalhos, um artigo particularmente virulento contra Athor e seu grupo. Enrubesceu e empurrou o jornal com o pé para baixo da cama.
— Que é que você vai fazer agora, Theremon? — perguntou Siferra.
— Fazer?
— Depois que você descansar um pouco, quero dizer.
— Ainda não tive tempo de pensar no assunto. Por quê?
— Altinol quer saber se você pretende fazer parte do Corpo de Bombeiros.
— Isto é um convite?
— Ele concordaria em aceitá-lo. Você é o tipo de homem que pode ser útil para ele, um homem forte, acostumado a lidar com as pessoas.
— Pode ser — disse Theremon. — Eu faria bem aqui, não faria.
— Apenas uma coisa o preocupa. Só há lugar para um chefe no Corpo de Bombeiros, e este chefe é Altinol. Se você juntar-se a nós, terá que compreender logo de saída que o que Altinol decide deve ser aceito sem discussão. Ele não tem certeza de que você seja capaz de cumprir ordens.
— Disso nem eu tenho certeza — declarou Theremon. — Mas posso compreender o ponto de vista de Altinol.
— Concorda, então, em juntar-se a nós? Sei que nossa organização tem muitos defeitos, mas ao menos estamos defendendo a ordem, que é uma coisa de extrema necessidade nos dias de hoje. Altinol pode ser muito autoritário, mas ele está bem-intencionado. Tenho certeza disso. Ele simplesmente acha que a situação exige uma liderança firme e medidas de emergência. Que ele é capaz de tomar.
— Não tenho dúvida disso.
— Pense no assunto esta noite — disse Siferra. — Se quiser entrar para o Corpo de Bombeiros, fale com ele amanhã. Seja franco com ele. Ele vai ser franco com você, pode ter certeza. Contanto que você consiga convencê-lo de que não é uma ameaça direta à sua autoridade, vocês dois vão se dar…
— Não! — exclamou Theremon, de repente.
— Não o quê?
O repórter ficou em silêncio por alguns instantes. Depois, disse:
— Não preciso passar a noite inteira pensando no assunto. Acho que já sei qual vai ser a minha resposta.
Siferra olhou para ele, curiosa.
— Não quero competir com Altinol — explicou Theremon. — Sei o tipo de homem que ele é e não sou capaz de conviver por muito tempo com pessoas assim. Também sei que, a curto prazo, organizações como o Corpo de Bombeiros podem ser necessárias, mas, a longo prazo, elas tendem a fazer mais mal do que bem, e depois que se consolidam é muito difícil a sociedade livrar-se delas. Pessoas como Altinol não abrem mão do poder espontaneamente. Os pequenos ditadores jamais o fazem. E não quero que a ideia de que ajudei a colocá-lo no poder venha a me atormentar durante o resto da minha vida. Reinventar o sistema feudal não me parece a solução ideal para os problemas que estamos enfrentando no momento. De modo que a resposta é não, Siferra. Não vou usar o lenço verde de Altinol. Não há futuro para mim aqui.
— Que vai fazer, então?
— Sheerin disse-me que há um governo provisório de verdade sendo formado no parque Aragando. Gente da universidade, talvez alguns membros do governo antigo, líderes de todo o país pretendem se reunir lá. Assim que me sentir forte o suficiente para viajar, pretendo ir para Aragando.
Siferra ficou olhando para ele, sem dizer nada. Theremon respirou fundo. Depois, disse, em tom de súplica:
— Venha comigo, Siferra. — Estendeu a mão para ela. — Fique comigo esta noite, neste humilde cubículo. Amanhã de manhã, vamos juntos para o sul. Seu lugar não é aqui. Além disso, temos muito mais chance de chegar a Aragando se viajarmos juntos.
Siferra não disse nada. Theremon não retirou a mão.
— Então. Que é que você acha?
O repórter viu que Siferra estava sendo assaltada por emoções contraditórias. Era evidente que travava uma luta consigo mesma. De repente, porém, a luta chegou ao fim.
— Está bem. Está bem. Vamos fazer isso, Theremon. Tomou a mão do jornalista e apagou a luz do teto, deixando acesa apenas a lâmpada que estava no chão, ao lado da cama.
38
— Sabe em que bairro estamos? — perguntou Siferra. Estava olhando, consternada, para o cenário de desolação: casas em ruínas, veículos abandonados. Passava um pouco do meio-dia. Fazia três dias que haviam deixado o Abrigo. A. luz implacável de Onos iluminava cada parede enegrecida, cada janela estilhaçada.
Theremon sacudiu a cabeça.
— Tinha um nome bobo, disso você pode ter certeza. Jardim Primavera, Terra do Sol, alguma coisa assim. Mas o nome não importa. Isto aqui não é mais um bairro, Siferra. Está a caminho de tornar-se um sítio arqueológico. Um dos Subúrbios Perdidos de Saro.
Tinham chegado a um ponto bem ao sul da floresta, quase no perímetro urbano da cidade de Saro. Mais além, ficavam as plantações, pequenas cidades e, longe muito longe, o Parque Nacional de Aragando.
A travessia da floresta levara dois dias. Tinham passado a primeira noite no abrigo improvisado de Theremon e a segunda na encosta da colina de Ponto Onos. Durante todo esse tempo, não houvera nenhuma indicação de que o Corpo de Bombeiros estivesse no seu encalço. Aparentemente, Altinol não tentara segui-los, embora tivessem levado com eles armas e duas mochilas cheias de provisões. Agora, pensou Siferra, o perigo havia passado. Ela disse para o repórter:
— A estrada para Aragando começa aqui perto, não é?
— Daqui a quatro ou cinco quilômetros. Se tivermos sorte, não haverá nenhum incêndio para bloquear o nosso caminho.
— Vamos ter sorte. Pode contar com isso.
Ele riu.
— Sempre otimista, não é?
— Não custa mais do que ser pessimista — disse ela. De uma forma ou de outra, vamos passar.
— Certo. De uma forma ou de outra.
Estavam conseguindo manter um bom ritmo. Theremon parecia quase recuperado da surra que recebera na floresta e dos dias que passara praticamente sem comer. Forte como era, Siferra tinha dificuldade para acompanhar seu passo. A arqueóloga estava se esforçando para não cair em depressão. Desde o momento da partida, procurara mostrar-se confiante, afirmando constantemente que chegariam a Aragando e encontrariam pessoas como eles já ocupadas no planejamento da reconstrução do mundo.
Na verdade, porém, Siferra não se sentia tão segura. E quanto mais ela e Theremon se internavam naqueles bairros outrora elegantes, mais difícil se tornava resistir ao horror, ao choque, ao desespero, a uma sensação de derrota total. Era um mundo de pesadelo.