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O jornalista começou a rir com amargura.

— Como você tem coragem de achar graça de uma coisa dessas?

— Estou rindo da minha inocência — explicou Theremon. — Sabe, Siferra, há uma hora, quando estávamos nos aproximando da estrada, pensei que, com um pouco de sorte, poderíamos encontrar um carro abandonado com um pouco de combustível no tanque e simplesmente dirigir até Aragando. Seria muito conveniente, não acha? Só que não parei para pensar que a estrada estaria totalmente bloqueada, que mesmo que tivéssemos a sorte de achar um carro em bom estado, não conseguiríamos andar nem cem metros com ele…

— No estado em que está a estrada, até a pé vai ser difícil.

— É verdade. Mas não existe outro caminho. Sombrios, começaram a longa jornada para o sul. Iluminados pela luz quentes de Onos, caminharam pelo acostamento da rodovia, desviando-se dos carros amassados, tentando ignorar os corpos calcinados e mutilados, as poças de sangue seco, o cheiro de morte, o horror daquilo tudo.

Theremon percebeu que estava ficando rapidamente insensível a tudo aquilo. Talvez fosse esta a maior tragédia de todas. Depois de algum tempo, simplesmente deixou de notar o sangue coagulado, os olhos arregalados dos cadáveres, a imensidão do desastre que havia ocorrido ali.

O trabalho de escalar as pilhas de metal retorcido e se esgueirar por entre os veículos acidentados era tão difícil que exigia toda a sua concentração, e logo ele deixou de prestar atenção às vítimas da tragédia. Já sabia que era inútil procurar sobreviventes. Qualquer um que tivesse passado tanto tempo preso nos escombros com certeza já teria morrido de sede e de fome.

Siferra também parecia ter se adaptado rapidamente ao pesadelo que era a Grande Estrada do Sul. Praticamente em silêncio, procurava o melhor caminho por entre os obstáculos, ora se detendo para apontar uma passagem no meio dos destroços, ora se agachando para passar por baixo de uma massa de metais retorcidos.

Havia muito poucas pessoas usando a estrada. Uma vez ou outra, viam outros viajantes rumando para o sul ou cruzavam com pedestres que se dirigiam para a cidade de Saro. Em todos os casos, os caminhantes tratavam de se esconder no meio dos destroços ou saíam correndo até desaparecerem. De que tinham medo?, pensou Theremon.

De serem atacados por nós. Agora é todo mundo contra todo mundo…

Uma vez, cerca de uma hora depois que começaram a caminhar, viram um homem imundo indo de carro em carro, parando para remexer nos bolsos dos mortos. Levava um grande saco nas costas, tão pesado que o fazia cambalear. Theremon praguejou e sacou a pistola.

— Olhe para esse sujeito! Olhe para ele!

— Não, Theremon!

Siferra empurrou o braço do repórter no momento em que este puxou o gatilho. O tiro acertou em um carro próximo ao saqueador, fazendo-o brilhar por um momento com a energia refletida.

— Por que fez isso? — perguntou Theremon. — Eu só estava querendo assustá-lo.

— Pensei… que você…

Theremon sacudiu a cabeça.

— Não. Ainda não. Veja… veja como ele corre!

O ruído do tiro fizera o saqueador se voltar, olhando espantado para Theremon e Siferra. Seus olhos estavam esgazeados, um filete de saliva escorria do canto dos seus lábios. De repente, largou o saco no chão e saiu correndo por cima dos carros, até desaparecer na distância.

Seguiram caminho.

A marcha era lenta e penosa. As placas indicadoras pareciam zombar do seu progresso, revelando que haviam coberto uma distância ridiculamente pequena desde o início da jornada. Quando Onos se pôs, tinham andado apenas dois quilômetros e meio.

— Desse jeito — disse Theremon, desanimado — vamos levar mais de um ano para chegar a Aragando.

— Depois de pegarmos o jeito, vamos andar mais depressa — observou Siferra, sem muita convicção.

Se ao menos pudessem usar uma rua paralela à estrada, em vez de andarem pelo acostamento, tudo seria bem mais fácil. Entretanto, isso era impossível. Boa parte da Grande Estrada do Sul era um elevado que passava por cima de florestas, pântanos e uma ou outra zona industrial. Havia também pontes sobre minas abandonadas, rios e lagos. Assim, em grande parte da distância, seriam forçados a usar a própria estrada, apesar dos obstáculos infinitos.

Permaneciam no acostamento sempre que possível, já que a concentração de veículos acidentados era menor do que no meio da estrada. Olhando para as cidades por onde passavam, podiam ver os sinais do desastre contínuo.

Casas incendiadas. Fogos ainda acesos depois de tanto tempo, estendendo-se até o horizonte. Pequenos bandos de refugiados, movendo-se rapidamente pelas ruas cobertas de escombros, em uma migração inútil, desesperada. Às vezes, um grupo maior, de mil pessoas ou mais, acampado em algum lugar aberto, as pessoas encolhidas, paralisadas, apáticas.

Siferra apontou para uma igreja incendiada no alto de uma colina, à beira da estrada. Um pequeno grupo de maltrapilhos estava trabalhando nas paredes, removendo os blocos de pedra com pés de cabra e espalhando-os no pátio da igreja.

— Parece que estão demolindo a igreja — observou. Para que fariam isso?

— Estão fazendo isso porque odeiam os deuses — explicou Theremon. — Eles acham que os deuses são responsáveis por tudo o que aconteceu. Conhece o Panteão, a grande Catedral de Todos os Deuses, na beira da floresta, com os famosos murais Thamilandi? Estive lá alguns dias depois do eclipse. Tinha sido incendiada. Reduzida a escombros. Ainda havia um padre no meio dos tijolos. Agora percebo que o incêndio não foi nenhum acidente. O incêndio foi proposital. E o padre… o padre foi morto por um louco diante dos meus olhos. Pensei que ele estivesse querendo roubar a roupa do padre. Talvez não tenha sido essa a verdadeira razão. Talvez a verdadeira razão tenha sido o ódio.

— Mas os padres não tiveram culpa…

— Já se esqueceu dos Apóstolos? Mondior, afirmando durante meses a fio que o que estava para acontecer era uma vingança dos deuses? Os sacerdotes são a voz dos deuses, não é verdade, Siferra? E se trilhamos o caminho do mal, a ponto de sermos punidos, os próprios padres devem ser os responsáveis pela chegada das Estrelas. Pelo menos, é o que as pessoas devem pensar.

— Os Apóstolos! — exclamou Siferra, com ar contrariado. — Gostaria de poder esquecê-los. Que acha que estão fazendo no momento?

— Devem ter escapado dos efeitos da Escuridão em sua torre.

— É verdade. Estavam preparados para tudo. Que foi que Altinoi disse? Que já estavam organizando um governo provisório ao norte da cidade de Saro?

Theremon olhou para a igreja na colina e disse, em tom desanimado:

— Posso imaginar que tipo de governo vai ser. Virtude por decreto. Mondior anunciando um novo mandamento por dia, Todas as formas de prazer proibidas por lei. Os pecadores executados em público. — Cuspiu no chão. — Pela Escuridão! Pensar que tive Folimun em minhas mãos aquela noite e o deixei escapar, quando podia esganá-lo com toda a facilidade…

— Theremon!

— Eu sei. De que adiantaria? Um Apóstolo a mais ou a menos? Melhor deixá-lo viver. Melhor deixá-los organizar um governo, e dizer aos infelizes que moram ao norte da cidade de Saro o que devem fazer e o que devem pensar. Que é que nós temos com isso? Estamos indo para o sul, não estamos? O que os Apóstolos fizerem não nos afetará. Eles vão ser apenas um entre cinquenta governos rivais, quando as coisas se acalmarem. Um entre cinco mil, talvez. Cada distrito terá o seu ditador, o seu imperador. — A voz de Theremon assumiu um tom sombrio. — Oh, Siferra, Siferra…

A arqueóloga segurou-lhe a mão. Em tom suave, perguntou:

— Está se culpando de novo, não está?