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Terry Pratchett

O oitavo mago

NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA

Terry Pratchett usa muito humor e sutileza na hora de escolher os nomes usados em suas histórias. Isso é um desafio para a tradução: como recriar em português os mesmos trocadilhos que o autor faz, contando com a cumplicidade do leitor que os decifra e se diverte com as referências a seu cotidiano?

O mago Lingote, por exemplo, chama-se no original, literalmente, “Zinco” (Spelter), por ser magro e alto. O chefe da Irmandade do Logro teve seu nome mantido: Carding significa, entre outras coisas, “instrumento de tortura para dilacerar a carne” e “imundice que se apega à lã do carneiro”. Isso parece dizer algo da personalidade dele, não?

Coin, nosso protagonista, também recebeu um nome que pode revelar boas surpresas, assim como a heroína da história, Conina. Esperamos que você também explore os significados que Pratchett escondeu nestes e em outros nomes do livro. Se quiser dar a sua opinião, entre em contato conosco via INTERNET, telefone, fax ou correio. Nas próximas edições, poderemos incorporar suas idéias.

Boa leitura!

DEDICATÓRIA

Muitos anos atrás, na cidade de Bath, eu vi uma senhora norte-americana muito gorda puxando uma imensa mala xadrez com rodinhas que chacoalhavam, prendendo-se às fendas do chão, e que pareciam ter vida própria. Naquele instante, nasceu a Bagagem. Agradeço a essa senhora e a todas as pessoas de lugares como Power Cable, Nebraska, que nunca recebem o incentivo necessário.

Este livro não tem mapa. Sinta-se à vontade para criar o seu.

Terry Pratchett

Houve um homem, e ele teve oito filhos. Fora isso, não passou de uma vírgula na página da História. E triste, mas é tudo que se pode dizer de algumas pessoas.

O oitavo filho, por sua vez, cresceu, casou-se e teve oito filhos, e, como existe apenas uma profissão apropriada ao oitavo filho de um oitavo filho, ele se tornou um mago. E tornou-se sábio e poderoso, ou pelo menos poderoso, e usava um chapéu pontudo e tudo terminaria aí…

Deveria ter terminado aí…

Mas, contra a Doutrina da Magia e certamente contra toda a razão — salvo as razões do coração, que são cálidas, confusas e, bem, nada razoáveis —, ele abandonou o círculo de magia, apaixonou-se e se casou, não necessariamente nessa ordem.

E teve sete filhos, cada qual, desde o berço, tão poderoso quanto qualquer mago do mundo.

Então, ele teve o oitavo filho…

Mago ao quadrado. Fonte de magia.

Um fonticeiro.

Raios de verão irrompiam por entre os penhascos de areia. Bem abaixo, o mar sugava as rochas fazendo tanto barulho quanto um velho com um único dente que ganhasse um pé de moleque. Algumas gaivotas pairavam nas alturas, esperando que algo acontecesse.

E o pai dos magos estava sentado em meio a plantas inquietas, na beira do penhasco, embalando o filho nos braços e mirando o oceano.

Havia uma nuvem negra sobre o mar, avançando em direção a terra, e a luz que ela filtrava possuía a textura aveludada que prenuncia uma grande tempestade.

Ele se virou, ao sentir um súbito silêncio que lhe chegou por trás, e ergueu os olhos vermelhos de choro para o vulto alto e encapuzado, vestido com um manto negro.

— IPSLORE, O VERMELHO? — perguntou o vulto.

A voz era cavernosa como uma gruta, densa como uma estrela de nêutrons.

Ipslore abriu o sorriso medonho dos subitamente enlouquecidos e suspendeu o filho à inspeção de Morte.

— Meu filho — disse. — Vou chamá-lo Coin.

— NOME TÃO BOM QUANTO QUALQUER OUTRO — considerou Morte, educadamente.

As órbitas oculares vazias se voltaram para baixo e fitaram o rostinho redondo, envolto em sono. Apesar dos boatos, Morte não é cruel — apenas terrivelmente, terrivelmente bom no que faz.

— Você levou a mãe dele — disse Ipslore.

Era uma constatação, sem nenhum rancor aparente. No vale, atrás dos penhascos, a propriedade de Ipslore resumia-se, agora, a escombros fumegantes, com o vento nascente espalhando as delicadas cinzas pelas dunas uivantes.

— FOI ATAQUE CARDÍACO — observou Morte. — EXISTEM MANEIRAS PIORES DE MORRER. VÁ POR MIM.

Ipslore olhou o mar.

— Nem toda a minha magia pôde salvá-la — lamentou.

— HÁ LUGARES AONDE NEM A MAGIA PODE IR.

— Agora você veio pelo menino?

— NÃO. O MENINO TEM SEU PRÓPRIO DESTINO. VIM BUSCAR VOCÊ.

— Ah.

O mago se levantou, cuidadosamente depositou o bebê adormecido na grama rala e pegou a vara comprida que estava ali.

O bastão era feito de metal preto, com uma malha de prata e inscrições douradas que lhe conferiam um mau gosto suntuoso e sinistro. O metal era octirona, intrinsecamente mágico.

— Fui eu que fiz, sabia? — disse. — Todos diziam que não se pode fazer vara de metal, que precisa ser de madeira. Mas estavam errados. Botei muito de mim mesmo nisso. Vou dar a vara para o meu filho.

Ele correu as mãos afetuosamente pelo bastão, que soltou um tinido leve. E, quase para si mesmo, repetiu:

— Botei muito de mim mesmo nisso aqui.

— É UMA BOA VARA — notou Morte.

Ipslore suspendeu-a no ar e fitou o oitavo filho, que ressonava.

— Ela queria uma menina — comentou.

Morte encolheu os ombros. Ipslore dirigiu-lhe um olhar que misturava perplexidade e raiva.

— O que ele é?

— O OITAVO FILHO DE UM OITAVO FILHO DE UM OITAVO FILHO — respondeu Morte, sem ajudar muito.

O vento lhe agitou o manto, levando as nuvens negras para cima.

— O que isso quer dizer?

— UM FONTICEIRO, COMO VOCÊ BEM SABE.

Um trovão ecoou no momento certo.

— Qual é o destino dele? — gritou Ipslore, mais alto que o barulho crescente do vento.

Morte encolheu os ombros outra vez. Era bom no negócio.

— OS FONTICEIROS TRAÇAM SEU PRÓPRIO DESTINO. TOCAM O MUNDO DE LEVE.

Ipslore apoiou-se na vara, tamborilando os dedos no metal, aparentemente perdido no labirinto de seus pensamentos. A sobrancelha esquerda se franziu.

— Não — murmurou. — Eu vou traçar o destino dele.

— NÃO RECOMENDO.

— Cale-se! Eles me expulsaram, com seus livros, rituais e doutrinas! Consideram-se magos, mas possuem menos magia naqueles corpos gordos do que eu tenho no dedo mindinho! Expulso! Eu! Por mostrar que sou humano? E o que seriam os seres humanos sem amor?

— RAROS — respondeu Morte. — TODAVIA…

— Escute! Eles nos obrigaram a vir para cá, para este fim de mundo, e isso matou minha mulher! Tentaram ficar com a minha vara! — Ipslore gritava acima do barulho do vento. — Bem, ainda me resta algum poder — continuou. — E digo que meu filho vai para a Universidade Invisível, usará o chapéu de arqui-reitor, e todos os magos do mundo se curvarão aos seus pés! Ele vai mostrar a todos o que existe no fundo do coração de cada um. Covardes e gananciosos corações. Vai mostrar ao mundo seu verdadeiro destino, e não haverá magia maior que a sua.

— NÃO.

E o estranho no modo silencioso de Morte dizer a palavra foi o seguinte: ela saiu mais alto que o bramido da tempestade. O que fez com que Ipslore recobrasse momentaneamente a sanidade.

Então ele oscilou para frente e para trás, incerto.

— O quê? — perguntou.

— EU DISSE NÃO. NADA É ABSOLUTO. NADA É DEFINITIVO. A NÃO SER EU, É CLARO. ESSA MANIPULAÇÃO DO DESTINO PODERIA SIGNIFICAR A RUÍNA DO MUNDO. PRECISA HAVER UMA CHANCE DE ESCAPE, POR MENOR QUE SEJA. OS ADVOGADOS DO DESTINO EXIGEM UMA BRECHA EM TODA PROFECIA.