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— Você é que deveria se preocupar.

— Por que eu?

— E a única outra pessoa, aqui, usando saia.

Rincewind se aprumou.

— É um manto…

— Manto, saia… Melhor torcer para que saibam a diferença.

Uma grande mão, feito um cacho de bananas com anéis, agarrou Rincewind pelo ombro e virou-o. O capitão, natural de Centrolândia, com feições de urso, sorriu para ele, por trás da maçaroca de pêlos faciais.

— Ê! — disse. — Não sabem que tem mago a bordo! Para criar na barriga deles fogo verde! E?

A mata escura das sobrancelhas se franziu quando ficou claro que Rincewind não estava exatamente pronto para lançar feitiços de vingança nos invasores.

— Ê? — insistiu ele, fazendo uma única vogal realizar o trabalho de toda uma seqüência de ameaças medonhas.

— É, bem, já estou tentando… fazendo das tripas coração — alegou Rincewind. — É o que estou fazendo. Das tripas coração. O senhor quer fogo verde?

— Também chumbo quente correr nos ossos — sugeriu o capitão. — Também encher pele de bolhas, e escorpiões, sem dó, comerem cérebros por dentro, e…

A primeira canoa chegou à lateral do navio, e dois arpéus atingiram a amurada. Quando o primeiro pirata apareceu, o capitão saiu, desembainhando a espada. Parou por um instante e se virou para Rincewind:

— Vai logo — ordenou. — Ou nada de tripas nem coração. E?

Rincewind voltou-se para Conina, que estava encostada na amurada, examinando as unhas.

— É melhor começar — disse ela. — São cinqüenta fogos verdes e chumbos quentes para viagem, e uma porção caprichada de bolhas e escorpiões. Suspenda a dó.

— Isso sempre acontece comigo — reclamou ele.

Por sobre a amurada, o mago espiou o que considerava ser o pavimento principal do navio. Os invasores estavam vencendo pelo simples peso dos números, usando redes e cordas para prender a tripulação. Trabalhavam em silêncio absoluto, batendo e não se deixando bater, sempre que possível evitando o uso de espadas.

— Não podem estragar a mercadoria — concluiu Conina.

Em agonia, Rincewind viu o capitão ser derrubado por uma multidão de homens vestidos de preto, enquanto gritava: “Fogo verde! Fogo verde!”

Rincewind recuou. Não era nada bom em mágica, mas havia tido sucesso irrestrito em se manter vivo até então e não estava disposto a estragar o recorde. Apenas precisava aprender a nadar no tempo que se levava para submergir até o fundo do oceano. Valia a pena tentar.

— O que está esperando? Vamos embora enquanto eles estão ocupados — disse para Conina.

— Preciso de uma espada — rebateu ela.

— Daqui a pouco, você vai poder escolher.

— Uma basta.

Rincewind chutou a Bagagem.

— Vamos — chamou. — Você tem muito o que boiar.

A Bagagem estendeu as perninhas com petulância exagerada, virou-se devagar e se assentou ao lado da garota.

— Traidora — resmungou Rincewind para as dobradiças.

A luta parecia ter chegado ao fim. Cinco dos invasores subiram a escada que levava ao convés de ré, deixando que os outros homens arrebanhassem a tripulação. O líder tirou a máscara e olhou com malícia para Conina. Deu meia-volta e olhou com malícia para Rincewind por um período mais longo.

— Isso aqui é manto — tratou de afirmar Rincewind. — E é melhor você tomar cuidado, porque eu sou mago.

Ele respirou fundo, e disse:

— Se encostar um dedo em mim, vai me fazer desejar que não tivesse. Estou avisando.

— Mago? Magos dão péssimos escravos — considerou o líder.

— E a mais pura verdade — concordou Rincewind. — Então, se você puder abrir passagem e me deixar…

O líder se voltou para Conina e acenou para um dos colegas. Apontou o polegar tatuado na direção de Rincewind.

— Não o mate rápido demais. Aliás… — Ele parou e abriu um imenso sorriso para Rincewind. — Talvez… sim! E por que não? Sabe cantar, mago?

— Talvez — respondeu Rincewind, com cautela. — Por quê?

— Pode ser que você seja exatamente o homem de que o xerinfe precisa para um serviço no harém.

Dois dos traficantes riram.

— Pode ser uma oportunidade única — continuou o líder, incentivado pelo apreço da platéia.

Houve mais aprovação lá de trás. Rincewind se afastou.

— Acho que não — disse. — Obrigado, mesmo assim. Não fui talhado para esse tipo de coisa.

— Ah, mas pode ser — insistiu o líder, com os olhos brilhando. — Pode ser.

— Ora, por favor — murmurou Conina.

Ela olhou de esguelha para os homens a cada lado seu, e então as mãos se agitaram. O que foi apunhalado com a tesoura possivelmente não saiu tão mal quanto o que foi golpeado com o pente, dada a catástrofe que um pente de aço pode fazer no rosto de alguém. Depois, ela se agachou, pegou a espada solta por um dos homens atingidos e investiu contra os outros dois.

O líder voltou-se para os gritos e viu a Bagagem de tampa aberta. Rincewind lançou-se contra ele, jogando-o ao que quer que existisse nas profundezas da arca. Ouviu-se um começo de grito, abruptamente interrompido. Em seguida, houve um estalido semelhante ao trinco do portal do Inferno.

Rincewind recuou, tremendo:

— Oportunidade única — rosnou, tendo acabado de entender do que se tratava.

Pelo menos ele teve a oportunidade única de ver Conina lutar. Poucos homens assistiam a isso duas vezes.

Os adversários começaram rindo da audácia da jovem pequenina em atacá-los, para, logo depois, passarem rapidamente por vários estágios de perplexidade, dúvida, preocupação e terror, ao virarem o centro de um círculo fechado e reluzente de aço.

Ela liquidou o último guarda-costas do líder com dois golpes que fizeram os olhos de Rincewind lacrimejarem, e, com um suspiro, saltou a amurada do convés principal. Para irritação de Rincewind, a Bagagem decidiu segui-la, aparando sua queda no corpo de um pirata e aumentando o pânico dos invasores, porque, como se já não fosse terrível o bastante ser atacado com precisão cirúrgica por uma menina bonita de saia branca estampada de flores, era ainda pior para o ego do homem ser pisoteado e mordido por um acessório de viagem. Também fazia mal ao resto do homem.

Rincewind espiou por sobre a amurada.

— Exibida — murmurou.

Uma faca furou a madeira perto de seu queixo e ricocheteou, passando pela orelha. Ele ergueu a mão ao sentir uma dor aguda e olhou-a, horrorizado, antes de desmaiar. Não era sangue em geral que ele não podia ver, apenas o seu próprio sangue.

O mercado da Praça Sator, a grande extensão pavimentada de pedras, em frente ao portão negro da Universidade, estava em barafunda. Dizia-se que, em Ankh-Morpork, tudo se encontrava à venda, com exceção de cerveja e mulher, que apenas se alugavam. A maioria das mercadorias se achava à disposição no mercado da Sator, que, com o passar dos anos, havia crescido, uma barraca após a outra, até os recém-chegados terem de se acomodar junto à própria Universidade. Na verdade, elas formavam uma vitrine providencial para peças de fazenda e amuletos.

Ninguém notou o portão se abrir. Mas um grande silêncio rolou para fora da Universidade, espalhando-se, pela praça barulhenta e abarrotada, como as primeiras ondas frescas da maré correndo sobre o aguaçal. Na realidade, não era silêncio de fato, mas um imenso estrondo de antibarulho. Silêncio não é o contrário de som, apenas a sua ausência. Mas aquele era o som que existe no lado extremo do silêncio, o antibarulho, com seus decibéis soturnos abafando, feito veludo, o vozerio do mercado.

As pessoas corriam os olhos à volta, abrindo a boca como peixes dourados e produzindo mais ou menos o mesmo efeito. Todas se viraram para o portão.