— Servem?
— Não sei. Nunca tentei.
— Você nos meteu nessa!
— Calma. Acho que só vão nos levar como prisioneiros.
— Ah, para você está ótimo. Não vai ser a oferta especial da semana.
A Bagagem fechou a tampa uma ou duas vezes, meio indecisa. Com cuidado, um dos homens estendeu a espada e espetou a nuca de Rincewind.
— Querem nos levar a algum lugar, está vendo? — perguntou Conina. Ela rilhou os dentes. — Ali, não — murmurou.
— Qual é o problema agora?
— Não posso!
— O quê?
Conina pôs as mãos no rosto.
— Não consigo me deixar levar prisioneira sem lutar! Sinto mil ancestrais bárbaros me acusando de traição! — sussurrou, com urgência. — Espere aí, não vai demorar nada.
Houve uma agitação súbita no ar, e o homem mais próximo caiu gorgolejando. Os cotovelos de Conina recuaram, acertando a barriga dos homens que se encontravam na retaguarda. O braço esquerdo ricocheteou, passou pela orelha de Rincewind, com um barulho de seda rasgando, e abateu o homem que estava atrás dele. O quinto surgiu correndo e foi derrubado por um objeto voador, que lhe fez bater com força a cabeça no muro.
Conina rolou no chão e sentou-se, arfante, os olhos brilhando.
— Detesto dizer isso, mas me sinto melhor agora — admitiu. — É horrível saber que fui contra a tradição das cabeleireiras. Ah.
— É — assentiu Rincewind, sério. — Eu estava me perguntando se você já os havia notado.
Conina estudou a fila de arqueiros que surgira no muro oposto. Eles tinham a aparência impassível e inalterável de quem recebeu dinheiro para executar um serviço e não se incomoda muito que o serviço envolva assassinato.
— Hora de usar aquelas presilhas — sugeriu o mago.
Conina não se mexeu.
— Meu pai sempre dizia que não faz sentido atacar o inimigo extensivamente munido de armas impulsoras — advertiu a moça.
Rincewind, que conhecia o modo de Cohen falar, dirigiu a ela o olhar incrédulo.
— Bem, o que ele realmente dizia — corrigiu a menina — era: nunca chute o rabo de um porco-espinho.
Lingote não conseguiu tomar o café-da-manhã.
Ele se perguntava se deveria falar com Carding, mas tinha a terrível sensação de que o velho mago não lhe daria ouvidos e não acreditaria em nada. Na verdade, ele mesmo não tinha certeza se acreditava… Tinha, sim. Jamais esqueceria aquilo, embora pretendesse com todas as forças.
Um dos problemas de viver agora na Universidade era que o prédio em que se dormia provavelmente não seria o mesmo pela manhã. Os quartos haviam criado o hábito de se alterar e mudar de lugar, conseqüência de toda a magia aleatória. Ela se formava no tapete, impregnando os magos de tal modo que apertar a mão de outra pessoa era uma maneira infalível de transformá-la em alguma coisa. A formação de magia, na realidade, estava superando a capacidade da área de manutenção. Se ninguém fizesse nada a respeito, até a gente comum logo seria capaz de usá-la — uma idéia assustadora, mas que, como a mente de Lingote estava tão cheia de idéias assustadoras que dava para usá-la como fôrma de gelo, não seria uma daquelas com que ele passaria muito tempo se preocupando.
Geografia doméstica não era a única dificuldade, porém. A pressão da afluência taumatúrgica estava afetando até os alimentos. O que era uma garfada de arroz, ao sair do prato, poderia muito bem se transformar em outra coisa até entrar na boca. Se a pessoa tinha sorte, não seria comestível. Se não tinha, era comestível, mas provavelmente nada que gostássemos de pensar que estivéssemos prestes a engolir, ou, ainda pior, já tivéssemos engolido pela metade.
Lingote encontrara Coin no que, até a noite anterior, havia sido um armário de vassoura. Agora estava bem maior. Foi apenas porque Lingote nunca ouvira falar em hangar de avião que não soube com o que compará-lo, embora, para ser sincero, pouquíssimos hangares possuam chão de mármore e estátuas. No canto, as duas vassouras e o pequeno balde amassado pareciam notadamente deslocados, mas não tão deslocados quanto as mesas esmigalhadas do ex-salão principal, que, devido às ondas de magia pairando no local, havia encolhido ao tamanho aproximado do que, se Lingote conhecesse, teria chamado de uma pequena cabine telefônica.
Ele entrou no cômodo com muito cuidado e juntou-se ao conselho de magos. O ar estava carregado de energia.
Lingote criou uma cadeira ao lado de Carding e inclinou-se para ele.
— Você não vai acreditar… — começou.
— Silêncio — sussurrou Carding. — É incrível!
Coin estava sentado no banco ao meio do círculo, com uma das mãos na vara e a outra estendida, segurando um objeto pequeno, branco e parecido com um ovo. Era estranhamente difuso. Na verdade, pensou Lingote, não era algo pequeno visto de perto. Era algo imenso, mas a uma longa distância. E o garoto o firmava na mão.
— O que ele está fazendo? — cochichou Lingote.
— Não tenho certeza — murmurou Carding. — Até onde entendemos, está criando um novo lar para a magia dos magos.
Raios de luz colorida reluziam na indistinta forma ovóide como uma tempestade longínqua. O clarão iluminava por baixo o rosto preocupado de Coin, conferindo-lhe o aspecto de uma máscara.
— Não entendo como vamos caber todos aí — considerou o tesoureiro. — Carding, na noite passada eu vi…
— Acabou — anunciou Coin.
Ele suspendeu o ovo, que de vez em quando se acendia com alguma luz interna e formava pequenas saliências brancas. Não só estava a uma longa distância, pensou Lingote, como também era muito pesado. Na verdade, atravessava o conceito de peso até o estranho realismo negativo em que chumbo seria vácuo. Ele puxou a manga de Carding outra vez.
— Carding, escute, é importante, escute, quando eu olhei…
— Eu realmente gostaria que você parasse com isso.
— Mas a vara, a vara não é…
Coin pôs-se de pé e apontou o bastão para a parede, onde instantaneamente surgiu um vão. Depois passou por ele, com os magos em seu encalço.
Atravessou o jardim do arqui-reitor acompanhado pelo grupo de magos, como um cometa se faz acompanhar de sua cauda, e só parou ao alcançar as margens do Ankh. Lá havia alguns salgueiros velhos, e o rio contornava um pequeno campo conhecido de maneira otimista como Jardim de Prazer dos Magos. Nas noites de verão, quando o vento soprava na direção do rio, era um lugar maravilhoso para passear.
A neblina quente e prateada ainda pairava sobre a cidade quando Coin atravessou o gramado úmido até o centro do campo. Arremessou o ovo, que traçou um arco suave no ar e caiu na lama.
Ele se virou para os magos.
— Afastem-se — ordenou. — E preparem-se para correr.
Apontou a vara de octirona para o objeto, submerso pela metade. Um raio de luz octarina surgiu da ponta e atingiu o ovo, detonando-o numa saraivada de faíscas que deixaram rastilhos de imagens azuis e roxas no local. Houve uma pausa. Em expectativa, uma dezena de magos fitou o ovo. Não aconteceu mais nada.
— Hã… — começou Lingote.
Nesse momento, veio o primeiro tremor. Algumas folhas caíram das árvores, e uma ave aquática alçou vôo, assustada.
O barulho começou como um gemido baixo, antes sentido do que escutado, como se os pés de todos tivessem virado orelhas. As árvores estremeceram, e alguns magos também. A lama em torno do ovo começou a borbulhar. E explodiu. O chão descascou feito limão. Gotas de lama quente atingiam os magos a saltar para a proteção das árvores. Apenas Coin, Lingote e Carding ficaram para ver o reluzente prédio branco emergir do campo, com terra e grama caindo do topo. Outras torres irromperam do terreno de trás. Os contrafortes cresciam em pleno ar, ligando as torres.