Lingote soltou um gemido quando o solo lhe escapou dos pés e foi substituído por lajes salpicadas de prata. Cambaleou no momento em que o chão começou a subir inexoravelmente, levando-os bem acima da copa das árvores. Os telhados da Universidade ficaram para trás. Ankh-Morpork estendia-se como um mapa, o rio parecia uma cobra aprisionada, as planícies eram um borrão anuviado. Os ouvidos de Lingote estalaram, mas a escalada prosseguia em direção às nuvens.
Os três emergiram, frios e molhados, à luz quente do sol, com nuvens que se estendiam para todos os lados. Outras torres surgiam ao redor, brilhando lancinantes à claridade do dia.
Carding ajoelhou-se e tocou o chão com cuidado. Acenou para que Lingote fizesse o mesmo.
Lingote sentiu a superfície, mais lisa do que pedra. Parecia gelo, se gelo fosse quente, e tinha a aparência de marfim. Apesar de não ser totalmente transparente, dava a impressão de que gostaria de ser.
Ele teve a nítida sensação de que, se fechasse os olhos, não conseguiria sentir nada. Cruzou o olhar com Carding.
— Não olhe para, hum, mim — disse. — Também não sei o que é.
Ambos se voltaram para Coin, que anunciou:
— E magia.
— Sim, senhor. Mas é feito de quê? — insistiu Carding.
— Feito de magia. Magia em estado natural. Solidificada. Coagulada. Renovada a cada instante. Dá para imaginar substância melhor para se construir o novo lar da fonticeria?
A vara cintilou por um instante, derretendo as nuvens. O Discworld surgiu lá embaixo e, dali de cima, dava para ver que de fato se tratava de um disco, ligado ao céu pela montanha central de Cori Celesti, onde viviam os deuses. Lá estava o Mar Círculo, tão perto que talvez fosse possível mergulhar nele. Ali estava o vasto continente de Klatch, esmagado pela perspectiva. A queda d'água da Beira do mundo fazia uma curva brilhante.
— E grande demais! — exclamou Lingote, baixinho.
O mundo em que ele vivia não se estendia para muito além do portão da Universidade, e ele havia preferido assim. O homem podia se sentir à vontade num mundo daquele tamanho. Com certeza não podia se sentir à vontade estando a oitocentos metros do chão e pisando num negócio que, de algum modo fundamental, não estava ali.
A idéia deixou-o pasmo. Ele era mago, e estava duvidando da magia.
Com cautela, aproximou-se de Carding, que disse:
— Não é exatamente o que eu esperava.
— Hum?
— Daqui parece bem menor, não parece?
— Bem, não sei. Escute, preciso lhe dizer…
— Olhe as Ramtops. Quase dá para tocá-las.
Os dois fitaram a enorme cordilheira branca, reluzente e fria, a duzentas léguas dali. Rezava a lenda que quem fosse até os recônditos vales das Ramtops acharia, nas terras geladas sob a própria Cori Celesti, o reino secreto dos Gigantes do Gelo, aprisionados depois da última batalha contra os deuses. Naquele tempo, as montanhas eram meras ilhas num grande mar de gelo, e o gelo ainda as dominava.
Coin abriu o sorriso dourado.
— O que você disse, Carding? — perguntou.
— É o ar puro, senhor. Parecem tão pequenas e próximas. Eu só disse que quase dava para tocá-las…
Coin pediu que se calasse. Esticou o braço fino, arregaçando a manga no sinal clássico de que estava para realizar mágica sem truques. Estendeu a mão e voltou com os dedos fechados em torno do que, sem sombra de dúvida, era um punhado de neve.
Abismados, os dois magos observaram-na derreter e pingar no chão.
Coin riu.
— Acham difícil de acreditar? — perguntou. — Será que devo pegar pérolas de Krull ou areia do Grande Nef? A velha magia dos magos conseguiria fazer metade disso?
Pareceu a Lingote que a voz traía certo tom metálico. O garoto encarou-os. Por fim, Carding suspirou e, em voz baixa, respondeu:
— Não. A vida inteira eu busquei a magia, e tudo que achei foram luzes coloridas, truques banais e livros velhos. A magia dos magos não fez nada pelo mundo.
— E se eu disser que pretendo dissolver as ordens e fechar a Universidade? Apesar de que, obviamente, meus conselheiros receberão o status devido.
Os nós dos dedos de Carding embranqueceram, mas ele deu de ombros.
— Não há muito que argumentar — admitiu. — De que vale uma vela ao meio-dia?
Coin virou-se para Lingote. A vara também. Os entalhes filigranados miravam-no com frieza. Um deles, no alto do bastão, era terrivelmente parecido com uma sobrancelha.
— Você está muito quieto, Lingote. Não concorda com o que eu disse?
Não. O mundo já experimentara a fonticeria e decidira trocá-la pela magia dos magos. A fonticeria não é para nós. Havia alguma coisa errada nela, e esquecemos o que era. Eu gostava da magia dos magos. Ela não transtornava o mundo. Adaptava-se bem. Era perfeita. Mago era tudo que eu sempre quis ser.
Ele olhou os próprios pés.
— Concordo — murmurou.
— Ótimo! — exclamou Coin, satisfeito.
Ele se dirigiu à beira da torre e contemplou o mapa de Ankh-Morpork, lá embaixo. A Torre de Arte mal chegava a um décimo da altura de onde estavam.
— Eu acho — continuou — que vamos realizar a cerimônia na semana que vem, à lua cheia.
— Ha… Só vai ter lua cheia daqui a três semanas — advertiu Carding.
— Semana que vem — repetiu Coin. — Se digo que a lua vai estar cheia, não tem discussão.
Ele continuou estudando os prédios minúsculos da Universidade e, então, apontou o dedo. — O que é aquilo? Carding esticou o pescoço.
— Hã… A biblioteca. É. A biblioteca. Hã…
O silêncio foi tão opressivo que Carding imaginou esperarem mais dele. Qualquer coisa seria melhor do que aquele silêncio.
— É onde guardamos os livros, entende? Noventa mil volumes, não é, Lingote?
— Hum? Ah. É. Cerca de 90 mil, eu acho.
Coin apoiou-se na vara e continuou olhando o edifício.
— Mandem queimar — ordenou. — Todos eles.
A meia-noite avançava, altiva, pelos corredores da Universidade Invisível, enquanto Lingote, com bem menos confiança, seguia cauteloso em direção à porta da biblioteca. Ele bateu na madeira, e o som ecoou tão alto no prédio vazio que o tesoureiro teve de se apoiar na parede e esperar que o coração desacelerasse um pouco. Depois de um tempo, escutou o barulho de mobília pesada sendo arrastada.
— Oook?
— Sou eu.
— Oook?
— Lingote.
— Oook.
— Olhe, vocês têm de sair daí! Ele vai botar fogo na biblioteca!
Não houve resposta.
Lingote deixou-se cair de joelhos.
— Ele vai, sim — sussurrou. — Provavelmente vai me pedir para fazer o serviço. É a vara, hum, ela sabe de tudo que se passa. Sabe que eu sei… Por favor, me ajude…
— Oook?
— Na outra noite, espiei o quarto dele… A vara… a vara estava brilhando, parada no meio do quarto, como um sinal luminoso, e o menino chorava na cama. Dava para sentir que ela estava lhe ensinando, sussurrando coisas terríveis. Então, notou minha presença. Você tem de me ajudar, é o único que não está sob o…
Lingote se deteve. O rosto congelou. Ele se virou bem devagar, sem querer fazê-lo, porque alguma coisa o fazia girar.
O tesoureiro sabia que a Universidade estava vazia. Todos os magos haviam se mudado para a Nova Torre, onde o mais reles aluno tinha uma suíte mais esplêndida do que qualquer mago sênior jamais tivera.
A vara pairava no ar, a poucos metros de distância. Estava cercada de um leve brilho octarina.
Ele se levantou devagar e, mantendo as costas na parede de pedras e os olhos fixos no objeto, cuidadosamente avançou de lado, até alcançar o fim do corredor. Lá, notou que a vara, embora não tivesse saído de onde estava, havia girado para acompanhá-lo. Ele soltou um grito, suspendeu o manto e correu. A vara surgiu adiante. Lingote parou e se deixou ficar, recuperando o fôlego.